Dos 4 aos 6 anos as crianças vivem a experiência de crescer e aprender em uma instituição educativa que respeita as prioridades da infância e que valoriza o modo infantil de ver o mundo. Depois, aos 6 anos, ocorre outra importante passagem da vida: a transição da Educação Infantil para o 1º ano da escola de Ensino Fundamental.
Que implicações isso traz para os processos de desenvolvimento das crianças? E para o trabalho dos professores? Conversamos com Silvana Augusto, professora e coordenadora da pós-graduação em “Educação Infantil: investigações e fazeres das crianças de 4 a 6 anos”, que visa formar especialistas para o trabalho com a primeira etapa da educação básica. Leia a seguir.
Por que é importante considerar a educação dos 4 aos 6 anos como primeira etapa da educação básica? Que impactos isso acarreta aos professores?
A Educação Infantil é a primeira etapa da educação básica no Brasil e isso representa uma conquista enorme para a área. Até pouco tempo, a Educação Infantil era considerada uma opção das famílias e não um direito das crianças. A partir da emenda constitucional de 2009, a Educação Infantil passa a ser obrigatória, a primeira etapa da Educação Básica de toda criança brasileira e isso tem impactos importantes.
Em primeiro lugar, para o desenvolvimento das crianças: pesquisas mostram que alunos que tiveram acesso à Educação Infantil têm vantagens em relação ao desenvolvimento da linguagem, da autonomia e outras tantas habilidades específicas. Também mostram que essas crianças obtêm melhores resultados no desempenho escolar nas séries iniciais do Ensino Fundamental.
Há pesquisas indicando, inclusive, impactos econômicos da educação desde a primeira infância: cada dólar investido na educação de uma criança em idade pré-escolar traz um retorno anual de 14 centavos durante toda a sua vida. Mas é importante saber que não basta ter acesso a uma instituição, mas sim a uma educação de qualidade.
E isso tem um impacto na carreira docente: para se alcançar o efeito esperado da Educação Infantil é preciso contar com profissionais que saibam o que é uma boa instituição de Educação Infantil, que reconheçam as especificidades da infância, seus modos próprios de aprender e de se desenvolver, que saibam planejar, desenvolver e avaliar processos de crianças enquanto são crianças, não alunos precoces. E é claro que isso tem um papel definitivo no engajamento das famílias ao matricularem cedo seus filhos em instituições de educação adequadas para a faixa etária.
O que há de especial na experiência de aprender dos 4 aos 6 anos?
Nessa idade é fundamental que as crianças tenham experiências criativas diversas, que permitam a elas pensar, explicar, levantar hipóteses, ter ideias de como as coisas funcionam e como podem se expressar e resolver diferentes problemas. As áreas de conhecimento, tal como o currículo escolar valoriza nos anos seguintes, já são sistematizações organizadas pelo mundo adulto.
É claro que as crianças têm direito e devem acessá-las, mas o farão a partir da própria experiência, quer dizer, do lugar de alguém que já pensou a respeito, que já observou tantos fenômenos da natureza e objetos da cultura. Dos 4 aos 6 anos as crianças aprenderão muito sobre tantas coisas, mas sobretudo aprenderão a se interessar, a investigar, a imaginar, a fazer perguntas e saber que estas questões não são tolices, mas tem muito valor no processo de aprender.
É o tempo de desenvolver recursos para se interessar por algo, pensar e motivar-se para aprender. Ao fazer tudo isso elas aprendem mais sobre si mesmas e isso é muito especial. Muitas experiências que serão vivenciadas nos anos posteriores do ensino fundamental são vividas ali na Educação Infantil, dos 4 aos 5 anos e 11 meses como experiências inaugurais, bagagem afetiva e cognitiva imprescindível na vida da criança no 1º ano, aos 6 anos.
Nesta fase do desenvolvimento infantil, como o brincar, o cuidar e o aprender se combinam?
Trata-se do mesmo processo. Brincar é a principal forma de expressão da criança no mundo, é sua principal linguagem, seu modo especial de ver o mundo. Não há como separar esse modo de pensar das propostas pedagógicas que a escola investe. Promover ambientes educativos de qualidade é uma forma de cuidar do corpo, do pensamento, dos afetos e da imaginação.
Como as experiências de aprender são inaugurais nessa fase da vida, tudo o que envolve ensinar e aprender envolve também uma dimensão do cuidado humano. Num currículo integrado de Educação Infantil, se aprende a cuidar de si, do outro, da natureza, dos objetos e do ambiente ao mesmo tempo.
Como foi estruturado o curso?
O curso foi estruturado em três módulos comuns que aproximam alunos da Pós-Graduação de Educação Infantil de 0 a 3 e de 4 a 6. São oferecidas referências que ajudam a compreender a infância como um processo integral, que vai dos 0 aos 6 anos. Além do núcleo comum, temos mais cinco módulos focados no trabalho dos ateliês e dos processos investigativos que têm como propósito aprofundar o trabalho com diferentes linguagens, sempre relacionando-o à BNCC.
Ainda, três módulos que tratam de conteúdos da gestão dos ambientes: um olhar para o ambiente de aprendizagem e o papel social da escola; a gestão das relações étnicos raciais e de gênero; o olhar para o acolhimento e os processos de passagem da Educação Infantil para o 1º ano.
Além dos módulos, o curso também conta com outros momentos de integração com professor de 0 a 3 anos: diálogos com profissionais da área e da produção cultural infantil, e momentos de entrelaces. Estes são atividades especialmente planejadas para que se possa constituir, pouco a pouco, o olhar para a especificidade do trabalho com as crianças de 4 a 6 anos sem perder a compreensão da infância como um todo.
Isso tem sido muito importante para formar um olhar mais abrangente para o desenvolvimento humano e compreender os complexos processos vividos pelas crianças, desde sua chegada ao mundo.
Quais abordagens pedagógicas serão usadas durante o curso?
Acolhemos no curso alunos que trabalham em escolas montessorianas, reggianas e internacionais, entre outras. A diversidade é uma qualidade do curso, e por isso mantemos os diferentes olhares, sem especificar nenhum. O curso não ensina a pedagogia de uma abordagem única, mas sim princípios educacionais e do trabalho com as linguagens que podem ser apropriados por qualquer profissional da Educação Infantil.
A base do curso são os princípios éticos, políticos e estéticos que regem a educação brasileira, segundo as Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a etapa.
Você também trabalha na extensão do Singularidades, com um curso de Alfabetização Inicial. Como você vê este aspecto na Educação Infantil?
É curioso que eu tenha pensado um curso de alfabetização para os professores do 1º ano e que, ao contrário do que eu previa, a maioria dos professores que procuraram esta formação são da Educação Infantil. Por que isso ocorreu? O que tem mudado na escola? Nos últimos anos tem havido uma crescente demanda por iniciar cada vez mais cedo o trabalho da alfabetização, ainda na Educação Infantil.
Muitos professores, pressionados pelas demandas das escolas e das famílias e inseguros em relação à especificidade do ensino para a faixa etária, ainda procuram o curso. Como temos visto que essa é de fato uma demanda real, desenhamos um módulo especial na Pós-Graduação para tratar do trabalho com as artes da palavra dos 4 aos 6 anos, como forma de ajudar os futuros especialistas a garantir o direito de toda criança pensar sobre como se lê e como se escreve do lugar de crianças.
O desafio é aprender a criar contextos significativos próprios para essa etapa, sem antecipar a escolaridade precocemente. Os alunos do curso aprendem a planejar e desenvolver campos para a exploração das diferentes manifestações das crianças em sua própria língua, promovendo a apropriação das práticas sociais de leitura e escrita em contextos culturalmente relevantes.
E tudo, claro, priorizando a brincadeira, que é o eixo fundamental da experiência simbólica do qual a escrita, tal como o desenho, também fazem parte. Portanto, se aprende na Pós-Graduação que brincar, ler e escrever não são territórios inimigos, e que há muito espaço para a criação e para a arte nesse complexo campo da “Escuta, Fala, Pensamento e Imaginação”.
Como serão apresentadas as iniciativas locais, nacionais e internacionais voltadas para as crianças desta faixa etária?
As iniciativas nacionais ou internacionais são apresentadas por meio da experiência dos professores que atuam no curso, profissionais altamente qualificados e com muita experiência em diferentes metodologias. Também são apresentados em atividades especiais como os Diálogos, por exemplo, que apresentam profissionais convidados para tratar de temáticas que ampliam as referências dos alunos.
Você definiu como critério para cursar a Pós-Graduação “Educação Infantil: Investigações e Fazeres com Crianças de 4 a 6 anos”, ser ou ter sido professor de Educação Infantil e trabalhar na área até hoje. Por que isso é importante? De que forma isso pode ser um diferencial para o curso?
A nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) traz como conceito principal a ideia de experiência e o protagonismo infantil no centro das atenções. Outras pedagogias modernas já defenderam as mesmas ideias, isso em si não é novidade. O que é importante ressaltar nesse momento é que o currículo de Educação Infantil é voltado para priorizar a constituição e a expressão das diferentes subjetividades infantis.
Mas isso pressupõe o papel do outro. E que outro seria esse? Ele precisa ser um sujeito criativo, capaz e muito presente, com escuta perspicaz e repertório para acolher as ideias das crianças e investir em suas iniciativas, fazeres e investigações. E como se pode formar um profissional assim? Entendemos que é por meio da experiência, das narrativas profissionais, das trocas entre sujeitos que, em diferentes tempos e lugares, compartilham ou já compartilharam dos mesmos dilemas profissionais.
Para ensinar alguém a ser especialista em Educação Infantil não basta conhecer teorias, é preciso ter um saber sobre a experiência de trabalhar com crianças, articulado ao conhecimento acadêmico. O curso da Pós-Graduação se tece, aula a aula, nas trocas de experiência de vida e saber acadêmico, de sujeitos para sujeitos.
Que competências os professores-alunos serão estimulados a desenvolver em seus alunos durante o curso?
Eles serão estimulados a problematizar as práticas tradicionais de Educação Infantil; trabalhar para a resolução de problemas complexos que envolvem a formação das crianças e as relações com suas famílias; explorar o potencial da diversidade no cotidiano das crianças, promovendo ambientes menos hegemônicos; organizar ambientes promotores de aprendizagem em diferentes linguagens, considerando aspectos da cultura local; identificar a progressão das aprendizagens infantis e desenvolver estratégias de intervenções visando o avanço das crianças; planejar e avaliar o trabalho com os ateliês e as proposições investigativas; acompanhar, documentar e avaliar os percursos criativos das crianças em diferentes campos de experiência, segundo a BNCC.
Além disso, desenvolverão competências específicas e de interesse pessoal, de acordo com o escopo do trabalho de conclusão de curso, uma pesquisa de caráter aplicado que deverá ser apresentada ao término do curso, como condição para a obtenção do título de especialista.
Você é autora de dois livros destinados à formação de professores de Educação Infantil (“O trabalho do professor de Educação Infantil;” “Ver-depois-de-olhar, a formação do olhar dos professores para o desenho de crianças”; “Bem-vindo mundo, criança, cultura e formação de professores”). Você planeja continuar escrevendo para professores? O que pretende escrever nos próximos anos?
Há um livro novo para sair muito em breve, no segundo semestre. Ela trata de práticas de Educação Infantil à luz das reflexões que a BNCC nos demanda. Foi escrito em parceria com uma excelente profissional, colega de anos de trabalho. Além disso, também estou trabalhado ideias para mais um livro, quem sabe no ano que vem.
A experiência da Pós-Graduação me trouxe de volta ao contato direto com as escolas e os reais problemas dos professores, o que eles enfrentam hoje: questões ligadas à gestão do tempo, sempre muito corrido; dúvidas sobre o desenvolvimento da linguagem, sobre o papel da leitura e da escrita desde cedo na vida das crianças, e sobre as relações com as famílias e as exigências das instituições.
Eu tenho colecionado as perguntas e muitos casos que as alunas e alunos me contam, e espero devolver tudo isso, em breve, partilhando tudo o que eles me fazem pensar. É uma forma de manter viva minha fonte de pesquisa: a escola, as crianças e seus professores.
O que você espera que os alunos da pós-graduação levem para a prática deles em sala de aula?
Espero que sintam a responsabilidade de promover o desenvolvimento de outras pessoas confiadas à sua condução profissional. Espero que se vejam fortalecidos pelo conhecimento para defender os direitos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças. Que dominem processos de documentação e, por meio disso, sejam sujeitos da própria história profissional e assegurem condições para que as crianças também construam suas memórias.
Que se sintam orgulhosos do trabalho que realizam e que se autorizem a propor e inventar novos modos de acompanhar as crianças nessa importante passagem da vida. Que se vejam competentes para avaliar e para enxergar avanços nos percursos de aprendizagem. Que se sensibilizem com a beleza das expressões das crianças, que se sintam tocados por isso para que possam promover experiências importantes para todas as crianças e suas famílias.
E, por fim, que se realizem como seres criativos, propositivos e se divirtam muito com as crianças, pois elas também geram processos fundamentais de desenvolvimento para todos os adultos. Isso é, para mim, o que resume um especialista em Educação Infantil. O meu trabalho aqui na Pós-Graduação é ajudar a formar esse profissional.
Silvana Augusto é doutora em Linguagem e Educação pela Faculdade de Educação e mestre em Educação na área de Didática e Teorias do Ensino e Formação de Professores, além de bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), tudo na USP. É coordenadora da pós-graduação “Educação Infantil: Investidações e Fazeres com Crianças de 4 a 6 anos), do Instituto Singularidades.
Para saber mais: http://institutosingularidades.edu.br/novoportal/produto/educacao-infantil-investigacoes-e-fazeres-com-criancas-de-4-6-anos/
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