“(…) Cabelo carapinha,
engruvinhado, de molinha,
que sem monotonia de lisura
mostra-esconde a surpresa de mil
espertas espirais (…)”
(Oliveira Silveira)
Você consome Literatura Afro-Brasileira e não sabe! O professor Eduardo de Assis Duarte, da Universidade Federal de Minas Gerais, no Portal Literafro, dedicado à Literatura Afro-Brasileira, lembra que esse é um conceito ainda em construção, embora seja possível traçar algumas marcas características da Literatura Afro-Brasileira.
“Uma voz autoral afrodescendente, explícita ou não no discurso; temas afro-brasileiros; construções linguísticas marcadas por uma afro-brasilidade de tom, ritmo, sintaxe ou sentido; um projeto de transitividade discursiva, explícito ou não, com vistas ao universo recepcional; mas, sobretudo, um ponto de vista ou lugar de enunciação política e culturalmente identificado à afrodescendência, como fim e começo”, escreveu.
Desse modo, quando “estudamos” Machado de Assis na escola, quando ficamos em estado de encantamento com a “escrevivência” de Conceição Evaristo, quando nos emocionamos com os diários literários de Maria Carolina de Jesus, quando descobrimos a força narrativa dos romances de Lima Barreto, entre tantos outros autores e autoras, contemporâneos ou não, estamos tendo contato com a Literatura Afro-Brasileira.
E porque definir essa literatura como afro-brasileira? É simples: para afirmar identidades afro-descendentes; para reconhecer, na escrita literária, traços culturais da relação África-Brasil; para exercitar, por meio da leitura crítica, atos de resistência vinculados à comunidade negra; e, sobretudo, para usufruir de textos literários que revelam indescritíveis apuro e sensibilidade estéticas.
Com a promulgação da Lei 10.639, em 2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases (LDB, 1996) e institui a obrigatoriedade, no ensino fundamental e médio, do ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, a leitura dessa literatura adquire especial importância para a divulgação/valorização do legado cultural africano que recebemos desde o século XVI, pois além de ampliar o pouco conhecimento que temos da cultura africana, sugere um novo olhar sobre a história africana e afro-brasileira e suas possíveis relações como o percurso histórico-cultural brasileiro.
No ano seguinte à aprovação dessa lei, verificou-se um esforço conjunto e concentrado, em especial por parte da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), no sentido de garantir à população afro-descendente o “ingresso, permanência e sucesso na educação escolar”, por meio de políticas públicas “de valorização do patrimônio histórico-cultural afro-brasileiro, de aquisição das competências e dos conhecimentos tidos como indispensáveis para continuidade nos estudos, de condições para alcançar todos os requisitos tendo em vista a conclusão de cada um dos níveis de ensino”.
Em resumo, a prática desta lei na escola pode elevar a autoestima do alunado negro, fazendo com que ele não apenas se reconheça nessa cultura, mas também assuma plenamente sua identidade, perante si e os outros, reconhecendo desse modo, seu papel na sociedade e a defesa por sua cultural, herança e cor.
E não há dúvida de que a Literatura Afro-Brasileria desempenha papel de destaque em todo esse processo! O exemplo da escritora Conceição Evaristo, aqui citada, é esclarecedor: a autora defende uma literatura que fale de suas vivências/experiências, e isso inclui a situação marginal, o preconceito, a indiferença e as injustiças vividas pela mulher negra na sociedade brasileira contemporânea.
Com incomum maestria e competência, Conceição Evaristo alcança, em sua obra, alto grau de poeticidade e qualidade literária, expondo o orgulho em ser mulher negra e trazendo-nos o legado deixado pelos povos da diáspora africana.
Em um de seus contos, “Olhos d´água”, em livro homônimo, a personagem da mãe negra – sentada num trono, como rainha de primeira grandeza, ao lado de suas filhas, autênticas princesas – tem seu cabelo afro enfeitado, trazendo os olhos molhados de águas de mamãe Oxum, articulando, de modo positivo, vários símbolos vinculados ao imaginário e à cultura afro-descendentes.
Nesta jornada sobre a Literatura Afro-Brasileira, vale citar também a poesia de Serafina Machado, poeta, professora e ativista da temática negra, que afirma, em tom grandiloquente:
“(…) Sou mulher
Sou Negra
Sou pobre
Sou história.
Escura como a noite.
Escura como o Nilo, jorrando ondas de
Negralma (…)”.
Já o poeta Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, um dos fundadores dos Cadernos Negros, revista que existe desde 1978 e que reúne contos e poemas de artistas negros, busca, por meio de sua produção poética, a descentralização e a descanonização da atual literatura brasileira, almejando sua reconfiguração a partir da memória afro e da identidade negra. Seguindo este espírito, Cuti denuncia, em uma de suas poesias:
“Quando o escravo
surrupiou a escrita
disse o senhor:
– precisão, síntese, regras
e boas maneiras!
São seus deveres”.
Com as poucas contribuições que trouxemos neste texto, talvez já seja possível imaginar o poder desta literatura e a importância de sua adoção em sala de aula. Dentro deste circuito literário, não há como ficar indiferente à “escrevivência” de Conceição Evaristo, à militância de Cuti ou à afirmação identitária de Serafina Machado, entre outros.
Portanto, mais do que nunca: por que não aprender/ensinar esta Literatura? Por que não adotá-la na escola e revelar outra face de nossa produção literária, face que ficou, durante muito tempo, submersa por padrões sociais e estéticos consagrados?
Márcia Moreira Pereira é graduada em Letras: Português-Inglês, possui pós-graduação lato-sensu em Tradução: Inglês-Português e é mestra em Educação pela Universidade Nove de Julho (Uninove). É doutora em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie (Uni-Mackenzie) e professora da licenciatura em Letras do Instituto Singularidades.
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