O filósofo tcheco naturalizado brasileiro Vilém Flusser dizia que “a fotografia nunca vai ser uma profissão, porque a máquina é um brinquedo”. O que ele queria dizer com isso? Diferentemente de outros instrumentos que o homem manipula no seu trabalho árduo, cotidiano e repetitivo, a câmera fotográfica permite a experimentação, a transgressão, o jogo e a arte. E que o resultado depende de quem a utiliza.
A primeira associação que me vem à cabeça ao ler essa citação do autor é que existe uma ligação intensa entre fotografar e brincar. Essa ideia fica clara quando realizamos um passeio fotográfico com professoras e professores pelos espaços urbanos de uma cidade.
Existem condições que nos levam a uma outra dimensão: um grupo de pessoas, fora da sala de aula, fora do ato funcional de trafegar pelas ruas com um objetivo definido, alheio ao tempo cronológico, coletando imagens fotografáveis.
A concentração e o movimento corporal dessa experiência estética são suficientes para não se querer parar de fotografar: vivemos a intensidade do olhar do street photographer (titulação que se refere ao fotógrafo cuja arte é registrar e capturar o cotidiano das metrópoles).
Já vi acontecer com grupos de educadores em capitais e cidades do interior, em suas praças, mercados públicos e feiras livres. É um tempo de fazer nada, de ócio criativo, de perambular pelas ruas, de vagabundear. Apenas estar no tempo presente e observar. Eventualmente, fotografar.
Nas nossas saídas pelas ruas das cidades em busca de experiências fotográficas o educador não trabalha com a câmera, mas brinca com ela. Como em um jogo de xadrez, o professor/fotógrafo procura um lance novo, uma imagem nova, a fim de realizar uma possibilidade oculta no jogo feito de formas, linhas, cores, luzes e sombras: exercitar ao máximo sua curiosidade.
E essa pessoa que manipula a câmera “não é um trabalhador, mas jogador: não um homo faber, mas homo ludens”, diz Flusser. A câmera funciona efetivamente em função da intenção lúdica do fotógrafo, bem no sentido do termo homo ludens.
A provocação do autor – “a máquina é um brinquedo” – ainda nos possibilita estabelecer outras associações. Primeiro, que esse aparelho está acessível a todos que querem “brincar” e que não necessariamente precisam esperar pela excelência profissional para serem fotógrafos.
Vincular o ato de fotografar ao ato de brincar legitima qualquer um, fotógrafo autorizado ou não, a se arriscar mais.
Segundo, que o ato fotográfico é um jogo. Por isso, sentimos que nesse estado atento e curioso – de mirar uma pessoa ou objeto – fotografamos com o corpo todo, utilizamos todos os nossos sentidos e as nossas referências culturais.
Pensamos, sentimos e nos movimentamos rapidamente. É um jogo de agilidade e presteza. E, naquele instante decisivo, apertamos o botão da câmera, para conseguir uma “boa jogada”.
Flusser diz que “fotógrafos não trabalham, agem. O fotógrafo produz símbolos, manipula-os e os armazena. Escritores, pintores, sempre fizeram o mesmo. O resultado deste tipo de atividade são mensagens: livros, quadros, projetos.
Não servem para serem consumidos, mas para informarem, serem lidos, contemplados, analisados e levados em conta nas decisões futuras”.
Parece que ele está sintetizando o que a verdadeira documentação pedagógica deve se propor a ser: conteúdos lúdicos a serem lidos, contemplados, analisados e levados em conta nas decisões futuras do processo de aprendizagem entre crianças e educadores.
No livro Filosofia da Caixa Preta, o filósofo termina um dos capítulos com um parágrafo sobre a câmera fotográfica, invocando nossa participação para o jogo: “a câmera fotográfica é um objeto tecnológico, feito de plástico ou metal.
Mas não é isso que a torna um brinquedo. Não é a madeira do tabuleiro e das pedras que torna o xadrez, jogo. São as virtudes, os caminhos possíveis contidos nas regras: o software”.
Esse software ao qual ele se refere é a “câmera interna”, nossa maneira individual e intransferível de olhar curiosamente sobre e com o universo da infância.
Vale registrar que o título do artigo partiu da percepção de uma criança, aluna de escola pública da Grande São Paulo. Ao ver sua professora ali em cena, atenta, fotografando momentos de aprendizagem no recreio, disse: “Professora, a câmera é o seu brinquedo!”. Naquele momento, a menina enxergou a disposição da educadora para o jogo fotográfico, para o prazer em fotografar.
André Carrieri, fotógrafo e educador, é professor do Curso de Verão Ateliê de Fotografia para Documentação Pedagógica, no Instituto Singularidades
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