Produtor de uma obra que é estudada por professores, sociólogos, filósofos e cientistas sociais de diversas partes do mundo, o educador Paulo Freire e seu legado foram homenageados no simpósio Sábado com Freire, organizado pelo Grupo de Estudos Paulo Freire, formado por professores e estudantes do Instituto Singularidades. O evento marca as comemorações do centenário de Freire, que nasceu em 19 de setembro de 1921, no Recife (PE).
Dividido em duas mesas de conversa (uma realizada na parte da manhã, e outra na tarde), o evento relembrou o trabalho de Freire à frente da Secretaria de Educação da cidade de São Paulo durante o governo de Luiza Erundina (1989-1993), e teve a participação de educadores que utilizam as práticas freireanas em sala de aula. A mediação foi de docentes e estudantes do Singularidades.
Um projeto de educação pública e democrática em São Paulo
Na primeira parte do simpósio, o presidente do Singularidades Alexandre Schneider, e os professores e fundadores do Grupo de Estudos Paulo Freire Franciele Busico e Júlio Valle receberam a atriz, contadora de estórias e graduanda do 8º semestre de Letras no Singularidades Ritah Koelho, que abriu o encontro com uma performance artística que relembrava as principais ideias do educador pernambucano.
Em seguida, os anfitriões conversaram com a pedagoga e professora aposentada Olga Kalil Figueiredo e a pedagoga e geógrafa Regina Villas Boas Estima, que atuaram na Secretaria de Educação de São Paulo durante a gestão de Freire e Erundina, e são duas das idealizadoras do Coletivo Paulo Freire, movimento criado para valorizar a herança de ensinamentos deixada pelo educador.
Durante a gestão de Luiza Erundina, Olga foi coordenadora de um dos Núcleos de Ação Educativa (NAE), hoje Diretorias Regionais de Ensino (DRE), e Regina foi uma das diretoras da Divisão de Orientação Técnica de Educação (DOTE), e responsável pelas políticas voltadas para a educação de adultos naquele momento.
Olga relembra que a criação do Coletivo se deu quando a gestão de Paulo Freire à frente da Secretaria de Educação da capital paulista fez 30 anos, em 2019. Era um momento bastante árido politicamente, quando o nome do educador vinha recebendo ataques em nível nacional por grupos defensores de projetos conservadores para a educação e para o país. Foi aí que um grupo de ex-colegas da Secretaria decidiu juntar-se para uma homenagem a Paulo Freire e Luiza Erundina.
“A ideia era que fosse uma coisa pequena, algumas entrevistas que seriam transmitidas pela Rádio Madalena, de São Paulo. Mas a coisa foi crescendo, juntamos os 10 coordenadores de NAE que trabalharam com o Paulo Freire, e a coisa cresceu. Um foi contatando o outro, e fizemos um ato que aconteceu na Uninove, na Rua Vergueiro, e lotou o auditório, com a presença de mais de mil pessoas”, relembra Olga.
A partir daí, conta Olga, a ex-prefeita convidou o grupo a dar continuidade àquela mobilização, para fazer um trabalho em defesa da escola pública e do legado do professor Freire. Aceito o desafio, o Coletivo passou a atuar desde então, sendo um motor de ações educativas e cidadãs, assim como uma preciosa fonte de pesquisa para milhares de pesquisadores das práticas freireanas.
A ex-professora recorda que, logo após a eleição de Erundina – que foi bastante disputada e comemorada pelos educadores paulistanos – ela foi convidada a participar do governo. O primeiro secretário escolhido pela ex-prefeita seria Paulo Freire, que ao assumir a missão de estar à frente da pasta de Educação, enviou uma carta à toda rede, apontando as prioridades da sua gestão.
“As reuniões (ou colegiados) eram semanais e sempre muito colaborativas. Tudo o que era feito na Secretaria era discutido antes com a comunidade escolar — educadores, famílias e estudantes. Por isso sempre saíamos destes encontros com muitas trocas importantes, mas também muito trabalho”, conta. Até a construção dos espaços escolares — onde elas deveriam ficar, o que deveriam ter nas salas de aula etc — era discutido com a comunidade escolar, completou.
Esta construção coletiva, reforça Olga, trouxe resultados surpreendentes, como a reorientação curricular por adesão, em que a secretaria apresentava a proposta, e as escolas discutiam entre si se adeririam ou não. Caso não aderissem, deveriam apresentar um outro projeto.
Regina diz que essa construção de projetos coletivos confirma um dos grandes ensinamentos de Paulo Freire, que era a sua capacidade de convivência com os diferentes. “Ele tinha uma equipe muito heterogênea e múltipla, que vinha de vários lugares, alguns do sindicato, outros do movimento social, outros ainda da universidade. E ele convivia de uma forma tão coerente e tão dialógica com todos que, sem negar as suas contradições”, rememora a ex-diretora.
Ela conta que, em seus primeiros dias na Secretaria, ela e seus colegas da Diretoria deveriam traduzir os princípios da educação participativa que Freire defendia em propostas pedagógicas. Depois de um extenso levantamento das necessidades e opiniões das escolas da rede, Freire criou um grupo de trabalho para redesenhar o ensino de jovens e adultos, tirando-o, de acordo com suas próprias palavras, “do campo do assistencialismo e levando-o para onde ele deveria estar, no da educação”.
Aí começaria um esforço focado numa pedagogia desenvolvida para o jovem adulto trabalhador, deixando de lado todo o arcabouço de conhecimento voltado para a alfabetização infantil. Regina conta que este trabalho resultou no Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos da Cidade de São Paulo (Mova-SP), considerado até hoje um formato de educação integral e inclusiva, que ensinava a partir do território do aluno.
Tanto Olga quanto Regina se emocionam ao lembrar-se da convivência com o mestre. “Semanalmente íamos para a Secretaria, que ficava na Avenida Paulista, e nos deparávamos com o Paulo Freire no corredor. Ele vinha com os braços abertos, chamando um por um pelo nome, como se fôssemos amigos de anos”, conta Olga.
Regina, por sua vez, recita um trecho do discurso que Freire fez no dia em que assumiu a Secretaria, e lembra de como Freire tinha uma alma festiva, de quem sempre gostava de comemorar as conquistas e as datas especiais. “Nós chegamos aqui para humildemente cumprir com o gosto do dever que nos fascina, um dever de educadores e, por isso, de políticos, com uma certa opção, é claro, porque não há educador neutro, porque não há educação neutra”.
Reinvenções freireanas
Na mesa da tarde, o Grupo de Estudos Paulo Freire trouxe quatro relatos de práticas freirenas em sala de aula, apresentadas por quatro professores, durante 15 minutos. As moderadoras foram Ana Cristina Meirelles, pedagoga formada pelo Singularidades, advogada e artista, e Alini Shreiter, educadora social e estudante de Pedagogia no Singularidades.
Miriam dos Santos, professora do ensino fundamental e pesquisadora das práticas freirianas e membro do Movimento Negro Unificado (MNU) e Alexandre Isaac, cientista social e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) completaram a mesa.
Os dois últimos convidados comentaram os trabalhos apresentados pelas educadoras Karina dos Santos Cabral, professora da EMEI Pérola Byington, em Pirituba; Marina Masello, docente da EMEI Nelson Mandella, no Jardim Pereira Lopes, Lu Azevedo, da EMEF Padre José Pegoraro, no Parque Cocaia, e Silvania Francisca de Jesus, professora e pesquisadora do Cieja Perus.
Karina apresentou seu projeto “Deixando de ser tia e passando a ser professora”, que trabalha com docência compartilhada e participação dos alunos. A prática ganhou o Prêmio Paulo Freire de Qualidade do Ensino Fundamental, que é oferecido pela Câmara Municipal de São Paulo, em 2016.
Já Marina mostrou o “Diretores por um Dia”, uma prática de gestão democrática na qual crianças da Educação Infantil tomaram decisões e foram provocadas a dar soluções para problemas da escola. Lu Azevedo tratou do Consciência Feminina na Escola (CFE), projeto que nasceu da necessidade de suas alunas do ensino fundamental em falar sobre a participação feminista e feminina, questionando os papeis na escola.
Já Silvânia, que além de professora é arte educadora e pedagoga Griô — abordagem pedagógica criada por Lillian Pacheco, que leva em conta a vivência, a corporalidade e a oralidade no processo educativo, apresentou o Ciclo de Cultura, projeto que começou em 2018, para acolher e cuidar dos alunos da educação de jovens e adultos por meio de atividades artísticas, como canto, dança e teatro, ativando a voz de cada participante.
O encerramento do Sábado com Freire foi feito por Franciele Busico, professora e orientadora do Núcleo de Estudos Freireanos do Singularidades, que teve início em 2020, em meio à pandemia, e rapidamente juntou dezenas de alunos e alunos em torno da pedagogia humana e afetiva do mestre pernambucano, que continua mais viva e necessária que nunca.
Professor e professora: se não pode participar do Sábado com Freire, confira o evento aqui e aqui.
Para saber mais: http://institutosingularidades.edu.br/novoportal/
Entre em contato: [email protected]