Imagine que, no melhor estilo Kafkaniano, você acorde em um dia qualquer e seja absolutamente incapaz de dizer qualquer palavra, que não consiga acessar pensamentos, muito menos organizar ideias e justificativas para compreender a terrível situação em que se encontra. Já pensou?
Por sorte, esse contexto hipotético extremo e fictício só foi proposto para te convidar a refletir sobre os infinitos mundos que se abrem diante de nós assim que começamos a dominar e articular nossas ideias por meio da faculdade da linguagem. Graças a ela, somos capazes de nomear e reconhecer o mundo à nossa volta, organizar nossos pensamentos, manifestar nossos desejos, dúvidas e saberes e, ainda, nos constituirmos como seres sociais.
As teorias linguísticas dizem que essa nossa habilidade é inata, isso é, nascemos com a plena capacidade de desenvolver tal faculdade, mesmo que para isso nunca precisemos de ensino formal e direcionado: uma criança exposta a um mínimo de estímulos de interação dialógica será capaz de aprender a reconhecer e articular os sons de sua língua, tecnicamente chamados de fonemas, e, por meio deles, começar a interagir e se reconhecer no mundo que a cerca.
A cada novo aprendizado e associação, suas conexões sinápticas vão se ampliando e permitindo que áreas neurais específicas sigam se especializando. Mas já está cientificamente comprovado que isso só funciona se a interação se dá de humano para humano, nem precisa tentar colocar um bebê na frente do noticiário da CNN americana na esperança de que ele se torne proficiente também em inglês…
Bem, tudo isso quer dizer que é por meio da interação social que essas especializações sinápticas permitem que aos poucos, desde a mais tenra idade, vamos aprendendo a diferenciar sons familiares, associá-los a determinados movimentos do aparelho fonador (pulmão, laringe, glote, palato, língua, dentes, lábios, etc) e, aos poucos, dominar a arte de reproduzir, unir e articular tudo isso para que aprendamos, então, nossa língua materna.
É esse domínio e essa proficiência em decodificar e produzir sentidos que nos permitirá compreender cada vez mais ideias abstratas e complexas que nos cercam.
Como se isso já não fosse suficientemente incrível, um pouco mais tarde, poderemos, ainda, agora dependendo de ensino formal, aprender a ler, a escrever e a dominar outros idiomas se assim desejarmos e se ainda não tivermos sido expostos a ambientes imersivos com duas ou mais línguas.
Toda essa gama de possibilidades faz com que essa seja uma das áreas da Neurociência mais instigantes e envolventes para se pesquisar e ainda há muitos caminhos que precisam ser trilhados para que avancemos na compreensão de como o cérebro organiza nosso aparato biológico e psíquico em torno da linguagem.
Aprender a falar nos apresenta nosso mundo, aprender a ler nos dá um passaporte vitalício para conhecer todos os mundos que quisermos
Dentre as muitas especializações a que nosso cérebro se submete diante dos processos interacionais e educacionais, a escrita talvez seja uma das mais interessantes e enriquecedoras.
Embora para uma pessoa alfabetizada o ato de ler pareça muito simples e automático (tente não ler algo escrito em sua língua materna em uma placa qualquer e falhe miseravelmente), antes de dominarmos essa habilidade, nosso cérebro precisa ser capaz de dominar uma série de aspectos biológicos e culturais.
É preciso dominar movimentos voluntários de nossos olhos que vem e vão ao longo das linhas e das palavras, adaptar uma área cerebral visual específica, modificando vários circuitos cerebrais antes só envolvidos na identificação de rostos e objetos, para depois começar a ser capaz de captar cada um dos sinais gráficos postos ali, decodificá-los e associá-los a uma espécie de dicionário mental de sons e letras socialmente compartilhados e memorizados para, enfim, juntar tudo isso e acessar um outro dicionário mental de sentidos e significados também construídos comunitariamente.
Ufa! Imagine agora o tamanho do desafio de aprender a ler e se tornar um indivíduo a que chamamos em nossa sociedade de “alfabetizado”. Um passo a passo nada trivial no começo, que permitirá o desenvolvimento de uma nova habilidade linguística que vai além da fala e exige que o aprendiz se aproprie de um outro universo, com todos os bônus que isso possa significar.
Independente da discussão pedagógica sobre qual é, de fato, o melhor método para oferecer o passaporte para o mundo da leitura e escrita, é preciso sempre dimensionar o salto evolutivo que transformar o mundo sonoro do falar e do ouvir em mundo concreto e visual do escrever representa para o indivíduo e sempre ter em mente, como defende a tão experiente e pertinente Magda Soares, que a melhor metodologia que pode ser usada para alfabetizar é caminhar em direção ao aprendiz, respeitando suas necessidades, seus ritmos e seus anseios e também os contextos múltiplos que se impõem diante de uma sociedade letrada: não basta apenas confiar e investir no método de alfabetização, é preciso sinalizar o caminho para se tornar letrado.
E aqui entendemos que uma pessoa letrada é aquela que consegue responder adequadamente às demandas sociais relacionadas com a leitura e a escrita, mesmo que ainda não domine o aparato técnico de juntar e decodificar letras e sons.
Desafio pequeno é bobagem: alfabetizando na pandemia
Já sabemos que a linguagem é uma faculdade que nos permite entender e moldar nossas relações subjetivas e humanas e que, dentre suas muitas facetas, dominar sua estrutura escrita também supõe um salto de habilidades evolutivas e interacionais. Sabemos também que, diferente do que ocorre quando aprendemos a falar (sem exigência de ensino formal e a partir de um mínimo de interação humana), para aprender a ler e a escrever é preciso esforço, paciência e consciência.
Apresentar toda uma nova categoria de sentidos e associações e dar tempo para que o indivíduo as assimile e as absorva não é tarefa que se dá da noite para o dia. Principalmente se também levarmos em consideração as demandas pedagógicas que assertivamente reconhecem que diante de uma sociedade como a nossa não basta tornar os indivíduos alfabetizados, mas é preciso, como já dito aqui, que eles sejam letrados.
Assim, principalmente ao falarmos do processo de ensino de leitura e escrita nos contextos dos anos iniciais da educação básica, temos que assumir que antes de alfabetizar a criança é preciso cultivar nela a vontade de se ver como protagonista na busca daquele novo saber e daquela nova habilidade, reconhecendo a escrita como mais uma ferramenta para entender o ambiente e o mundo a seu redor e paralelamente fornecer ferramentas e estratégias técnicas de reconhecimento e decodificação de todas as simbologias literais e não-literais envolvidas neste processo.
Sabemos também que o contexto pandêmico, que nos privou do tão importante convívio pedagógico-social, também obrigou que docentes, escolas e famílias buscassem se reinventar em uma nova sala de aula mediada pelo computador ou celular e por interações sem câmeras abertas ou organização de turnos de fala e assiduidade. O que por si só já seria complexo, tornou-se ainda mais desafiador.
Algumas pesquisas da área, embora ainda incipientes e longe de entender todos os cenários e vieses envolvidos, já parecem apontar que é possível construir, mesmo nas interações on-line e desde que se garanta a possibilidade de acesso tecnológico – restrita a tantos brasileiros e discentes das escolas públicas – essa ponte entre mundos e permitir que as crianças da educação básica já estejam mais próximas do “passaporte vitalício” personificado na capacidade de ler e escrever.
Todavia, para isso é preciso conhecer os repertórios e estágios dessas crianças e assumir que a rota precisará fazer uma ou outra escala no território do lúdico e do afeto e que a sociedade escolar também esteja disposta a exigir políticas públicas, eficazes e embasadas cientificamente, que valorizem a formação e a atuação docente e que reconheçam a importância e a relevância do domínio das competências linguísticas para a construção de uma sociedade com mais consciência e equidade que reconheça não só a linguagem, mas, principalmente o processo educativo, como um mundo de possibilidades e transformações.
Para saber mais:
DEHAENE, Stanislas. Os neurônios da leitura: como a ciência explica a nossa capacidade de ler, Porto Alegre, Penso. (traduzido por Leonor Scliar-Cabral, título original: Les neurones de la lecture), 374 pp, 2012. ISBN 978-85-63899-44-6
SOARES, Magda. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo. Contexto, 2016. E-book.
SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. 7. ed. São Paulo. Contexto, 2017. E-book.
Roberta Roque Baradel é mãe; pedagoga; licenciada e bacharela em Letras e Linguística; mestra em Linguística (UNICAMP); mestra e doutoranda em Neurociência e Cognição pela Universidade Federal do ABC; professora de Língua Portuguesa na rede pública e privada de ensino e docente da pós-graduação “Neurociência na Escola” do Instituto Singularidades.
Para saber mais: http://institutosingularidades.edu.br/novoportal/
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