Era uma turma pequena, de sete alunos de 10 anos. Eu ainda dava aula de inglês e não tinha certeza se queria mesmo ser professora. Estávamos estudando as partes do corpo, cada um fez um desenho de si mesmo e eles precisavam colorir a produção. Em menos de um minuto, a aula virou um caos. O motivo: só um aluno tinha o lápis, nas palavras deles, “cor de pele”.
Nessa época, eu tinha um roteiro para cada aula. No começo do semestre, a escola entregava um compilado de sequências didáticas, número de páginas que cada aula deveria cobrir e até a lição de casa do dia. Não tinha muito espaço para fugir do roteiro. Mesmo assim, naquele momento, não consegui ficar quieta.
Em primeiro lugar, o tal lápis “cor de pele” é aquele lápis salmão feíssimo, que faz qualquer um ficar a cara da Peppa Pig. Segundo, naquela pequena sala de sete alunos, tínhamos uma grande pluralidade de tons de pele (e nenhum deles era o rosé flamingo que eles tanto queriam).
Foi aí que eu percebi que não poderia nunca me prender a um único roteiro. Que não poderia me isentar daquilo que acontecia na minha sala de aula. Ser professor não era passar as páginas certas do livro, ou garantir que eles saíssem sabendo dizer “I have two eyes”. Eu estava ali para fazer parte da formação dessas crianças; essa é a minha maior responsabilidade.
Nas palavras de Paulo Freire: Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo.
Nesse dia, parei a aula e nos sentamos em roda, para conversar sobre a tal “cor de pele”. Eles escutaram, concordaram e até começaram a problematizar a pouca variedade de tons que tinham à disposição. Esse foi o primeiro dia que eu me senti, de fato, professora.
Senti que minha prática teve impacto, que meus alunos conseguiram elaborar um debate crítico sobre a nossa sociedade. E, ainda que não tenhamos conceitualizado o racismo, de alguma forma isso estava em pauta. Percebi que era isso que queria fazer: promover debates, construir pensamento crítico e formar cidadãos.
A educação que eu quero promover
Eu já tinha feito duas teses sobre Clarice Lispector na minha primeira graduação. Nessas pesquisas acabei me dedicando muito aos estudos de gênero e a discrepância com que as literaturas produzidas por homens e mulheres são recebidas e retratadas na nossa sociedade.
Durante a minha licenciatura em Letras no Instituto Singularidades, nas trocas com colegas, debates em sala de aula e provocações dos professores percebi a pertinência dessa pauta no âmbito escolar. A partir de então, iniciei minha pesquisa e, com a orientação da professora Márcia Moreira Pereira, concluí em 2019 o trabalho de conclusão de curso Visibilidade e Igualdade: o Ensino de Literatura produzida por Mulheres.
Para compreender melhor a relevância desse estudo, é necessária uma breve análise do atual contexto. Atualmente, a literatura no Brasil passa por uma fase de democratização e pluralização de vozes, especialmente de autores que foram historicamente silenciados. Chama-se esse movimento de “literatura marginal”, marcado principalmente por buscar espaço no cenário cultural — tradicionalmente ocupado por homens brancos de classe média/alta — para a produção de vozes marginalizadas.
Ao mesmo tempo, diversos movimentos sociais se fazem cada vez mais presentes, como por exemplo: (i) a terceira onda do feminismo, na qual as mulheres retomam a discussão sobre a desigualdade social de gênero e buscam maior visibilidade e representatividade; e (ii), o fortalecimento do movimento negro, principalmente nas periferias — marcado na literatura, por exemplo, pela popularização de concursos de poesia, os SLAMs.
A literatura pode ser percebida como uma ferramenta de ensino e de construção de um ser humano crítico e sensível. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2016) para o Ensino Médio elegeu 10 habilidades básicas que a educação deve garantir, sendo a primeira: “Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (BNCC, p. 9).
Ao tratar-se especificamente da área de linguagens e suas tecnologias, a BNCC elenca sete competências que devem ser abordadas no ensino da área. A segunda competência orienta que o ensino de linguagens deve compreender “os processos identitários, conflitos e relações de poder que permeiam as práticas sociais de linguagem” (BNCC, p. 481). Ao expor alunos à baixa diversidade de autores e temáticas literárias (seja em questões de gênero, etnia, sexualidade etc), não se está garantindo que seja construído um processo identitário.
Dessa forma, percebe-se que o momento não é apenas propício, mas também essencial para gerar maior representatividade e, portanto, dar maior visibilidade e propor práticas de igualdade em sala de aula.
Com essa problematização em mente, elaborei uma disciplina eletiva sobre literatura produzida por minorias, para alunos e alunas do Ensino Médio. A proposta do curso é dar voz às minorias, mergulhar no universo da literatura de autoria feminina e da literatura periférica, explorar diferentes tempos, gêneros e estilos e movimentos atuais.
Claro que é impossível contemplar toda a literatura marginal, mas é possível começar a compreendê-la, se envolver com suas narrativas, provocar e evocar nos alunos a vontade de conhecer mais.
Em uma das propostas da eletiva, os alunos e alunas devem produzir um texto argumentativo sobre a importância das vozes das minorias na sala de aula. Seguem alguns excertos das produções desse primeiro semestre de 2021:
“A sensação de não se sentir representado, seja na escola ou fora dela, impossibilita que o sentimento de pertencimento a diferentes espaços na sociedade se desenvolva. Se não há a oferta de um lugar que ensine que devemos nos incomodar quando não há alunos negros, não há professores negros, não há mulheres autoras dos livros que lemos, que pessoas transexuais não tem seus nomes sociais respeitados e que não há lugar de voz para os que são silenciados há décadas, continuaremos perpetuando ações negligentes e irresponsáveis.
Só a educação pode formar pessoas críticas capazes de desnaturalizar ações perversas e de fazer escolhas políticas que darão a devida e urgente importância a essas lutas.” (A., 1ª série)
“Gregório de Matos, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Fernando Pessoa, Mia Couto, Guimarães Rosa e Bernardo Carvalho. Esses são sete dos nove autores com livros na lista obrigatória da FUVEST de 2022. Todos são homens e brancos. Quando se fala sobre o sistema de ensino brasileiro, sabe-se que as obras literárias estudadas têm pouca diversidade em relação aos autores. Há poucos livros adotados escritos por mulheres negras, indígenas ou transexuais. Essa falta de representatividade é extremamente prejudicial às minorias nas escolas, podendo causar uma história única da realidade.” (B., 3ª série)
“Nos últimos anos, tem se tornado cada vez mais clara a importância da construção de espaços favoráveis à discussão das narrativas de minorias sociais e à compreensão, se não total, no mínimo significativa de suas jornadas sociais. Esse espaço, entretanto, precisa ser inicialmente criado dentro do local de formação dos sujeitos-cidadãos: as escolas. Se esse ambiente delimitado, que pode muito bem ser entendido como um recorte representativo de nossa sociedade nos âmbitos tanto social quanto político e econômico, não apresentar pautas inclusivas a todos, como podemos esperar mudanças em relação a manutenção de nossas relações amplamente, fora dos muros da escola? É cada dia mais evidente, portanto, a urgência da discussão das condições de vida das minorias, didática e subjetivamente, entre todas as idades, ao longo de todo o percurso escolar.” (M., 1ª série)
Ao provocar os alunos a refletirem e se posicionarem, percebo cada vez mais o papel fundamental da escola no processo formativo de novos cidadãos. Nas escolas percebemos que o uso da literatura tem se feito cada vez mais de modo funcional, e deixa-se de lado o prazer pela leitura e o poder provocador-reflexivo das obras de arte. Roland Barthes, em seu texto da aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária, lido no Colégio de França em 1977, afirma:
“A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. É nesse sentido que se pode dizer que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nomes das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real” (BARTHES, 1977, p. 19)
O estudo de literatura na escola, portanto, não está relacionado impreterivelmente a quem escreve, mas à análise e ao estudo das temáticas e recursos linguísticos abordados. A literatura é “o próprio fulgor do real”, e a sociedade em que vivemos, agora clama pelo reconhecimento e representatividade das vozes há tanto tempo silenciadas.
Isabella Tibiriçá é graduada em Letras Tradução: Português-Inglês pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e licenciada em Letras – Português pelo Instituto Singularidades. Atua como professora de redação e ministra a disciplina eletiva “Gracinha Marginália: uma viagem pela literatura produzida por minorias” para alunos de Ensino Médio na Escola Nossa Senhora das Graças.
Professor e professora: de que forma você vem incluindo obras de autoras mulheres, autores LGBTQIA+, negros e indígenas nos seus planos de aula? Compartilhe sua experiência conosco!
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