É ponto pacífico que a educação é uma das mais potentes ferramentas de transformação da sociedade. Entretanto, quando falamos sobre o acolhimento a pessoas LGBTQIAP+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais e Pansexuais, além de outras pessoas que não se encaixam nestes termos), bem como na formação de professores que tragam epistemologias produzidas por intelectuais e ativistas desta comunidade, a escola esbarra em muitas questões.
De acordo com a Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil de 2018 73% de 1.016 estudantes entrevistados, entrevistadas ou entrevistades já foram agredidos, agredidas ou agredides verbalmente, por causa de sua orientação sexual. Além disso, 60% sentiam insegurança pela mesma razão. Por conta disso, muitos acabam por abandonar a escola antes do final do Ensino Médio.
Para que esse quadro seja revertido, é necessário que o ambiente escolar se reinvente, produzindo conhecimento, abrindo espaço nos currículos para a discussão de temas urgentes, que visem combater o racismo, o capacitismo e a homofobia.
Lucas Dantas é uma pessoa trans não-binária, que escolheu o caminho da educação como ferramenta de luta e de vida. Ministra a disciplina de “Gênero e Sexualidade” nas pós-graduações em “Inclusão e Diversidade” e “Psicopedagogia” do Instituto Singularidades, além de atuar na pesquisa na área de “Gênero, Sexualidade e Corpos Dissidentes na Educação”. Na entrevista a seguir ele compartilha sua jornada conosco.
Com que idade você se reconheceu como uma pessoa LGBTQIAP+?
Ao longo da minha vida passei por diversos reconhecimentos a respeito da minha identidade de gênero e orientação sexual. Meu primeiro reconhecimento foi como homem (identidade de gênero) gay (orientação sexual), aos 15 anos, ainda de forma muito silenciosa sendo rondado pelo “armário”.
Com a minha chegada a São Paulo, em 2013, aos 17 anos, eu percebi a pluralidade dos corpos, das identidades de gênero e das orientações sexuais, através dos movimentos sociais, ativistas e até mesmo das expressões artísticas. Nesse processo peguei muito amor pela palavra Bixa, uma palavra que carrega uma luta imensa referente a expressão de gênero, sexualidade, entre outras potências.
Com 21 anos, um amigo me apresentou como um homem gay dentro de um debate e eu senti um desconforto imenso, a partir daí entendi que eu já não me reconhecia mais como um homem gay. Essa dimensão do desconforto me fez perguntar o que eu seria então, do ponto de vista da linguagem e também da existência.
Foi nessa época que tomei conhecimento da existência da não-binariedade como identidade de gênero e uma forma de estar no mundo, que se localiza fora da cisgeneridade (homem x mulher/ masculino x feminino), e também da pansexualidade, como uma orientação sexual que diz respeito a pessoas que se relacionam com as outras independente do seu gênero. Foi então que passei a me identificar com esses termos, porque senti que eles representavam o meu momento de vida e a minha identidade.
O que a não-binariedade representa para a comunidade LGBTQIAP+?
Acho que a linguagem é uma coisa muito mais importante na nossa vida do que a gente sequer dimensiona. Cursando Letras, aprendi que “o que não se nomeia, não existe”, logo, você não consegue lutar contra ou a favor do que não possui existência. Todos esses termos e conceitos envolvendo a comunidade LGBTQIAP+ servem para que as pessoas se encontrem no mundo, principalmente aquelas que fogem do heteroterrorismo e da cisgeneridade compulsória.
No entanto, os termos e conceitos não podem nos aprisionar no que eles são ou podem ser, mas têm que proporcionar justamente o encontro do corpo com a linguagem, numa expressão de representação, autonomia e liberdade.
A não-binariedade está sendo construída, discutida e vivenciada por muitos corpos que ao longo da sua vida não se reconheceram como mulher ou homem cisgêneros, termo que utilizamos para falar de pessoas que se identificam com o gênero imposto no nascimento.
No entanto, eu sei que temos um longo caminho pela frente de escrita, luta e articulação política que precisa ser criado. A não-binariedade foi e é extremamente importante na minha história, por isso lutarei por ela, assim como todas as outras pessoas trans (mulheres trans/ homens trans/ travestis) também lutaram pelas suas identidades.
E neste período, como foi o acolhimento recebido na escola, por professores, colegas e demais membros da comunidade escolar?
Na minha infância já estava muito bem demarcado que eu não correspondia às expectativas do que a família e a escola demarcavam como menino, masculino e homem. Foi uma constante as tentativas de querer me deformar para caber numa forma que não era a minha essência.
Os olhares, as piadas, as ofensas, o silenciamento e a autorrepressão marcaram a minha vida até o fim do Ensino Médio. Nenhum professor queria falar sobre isso, ninguém buscava mecanismos para tentar ajudar de alguma forma, não só a mim, mas a outras pessoas que vivenciavam essa crise.
Éramos um segredo estampado e as pessoas estavam confortáveis com a nossa identidade no armário. Eu estava cercado de pessoas cisgêneras e heterossexuais, que não enfrentavam nenhum desses problemas, namoravam, se expressavam e construíam suas vidas de forma aberta e segura.
Por isso, para elas não era interessante falar sobre as questões de gênero e sexualidade, as questões LGBTQIAP+. Ao passo de que, para nós, era exatamente o avesso, necessitávamos de tudo o que nos roubaram. Mas o armário não permite articulações políticas, simplesmente nos calávamos.
Havia amigos e professores que me acolhiam, e outros que me irritavam muito, por demarcar meu corpo e minha identidade sempre como algo diferente, anormal ou afeminado demais.
Houve algum momento em que você sentiu insegurança ou medo de ir à escola?
Quando criança, muitas vezes. Eu tinha uma bolsa com bonecas, roupas e outras coisas ditas “femininas” que escondia dos meus pais e de todos os amigos da escola. Era como uma bolsa secreta, que eu podia abrir para brincar com algumas amigas. Era como portar um segredo ou esconder algo valioso, eu tinha medo de ser descoberto.
Um dia menti para a minha mãe que era aniversário de uma amiga e que ela queria uma boneca. Mas não existia aniversário, aquela boneca era para mim, e essa foi uma das minhas primeiras conquistas, sem que ela soubesse. Tinha medo de que tudo fosse revelado e as pessoas soubessem que eu era uma grande mentira, quando eu era a minha própria verdade.
No Ensino Fundamental, evitava ir à escola dos dias em que sabia que iriam dividir a sala em meninos e meninas, visto que eu já me incomodava com esse fato. Na graduação, houve um período em aconteceram assassinatos de pessoas LGBTQIAP+ na linha do metrô em que eu circulava.
Aquilo me deixou semanas tendo que mudar a rota e com muito medo do que poderia acontecer comigo. Foi um período de trauma, no qual eu não saia de casa direito e só pensava naqueles jovens gays que foram esfaqueados no metrô Jabaquara.
Como você foi recibide por seus colegues e professores no Singularidaes? Como foi sua trajetória nesta instituição?
Minha graduação em Letras Português no Singularidades, no período de 2016 a 2019 foi a minha primeira formação acadêmica. Entrei com muito medo de como seria tratado nesse espaço. Na entrevista para a bolsa fiquei com muito medo do que seria avaliado.
Durante um semestre, fiquei observando os colegas de sala e os professores, ainda não falava abertamente sobre minha identidade e minha orientação, embora o corpo falasse por si só. Mas percebi que muitos professores eram LGBTQIAP+, e que meus amigos da turma também estavam bem à frente dessa questão.
A partir do segundo semestre eu queria recompensar todos os anos que passei silenciada. Queria falar sobre isso, estudar sobre isso, pesquisar sobre isso, eu tinha ânsia de tudo o que eu não tinha feito. Esse movimento permitiu não somente que nós, enquanto alunes, nos articulássemos e falássemos abertamente, mas os próprios professores.
Dentro dessa articulação, criamos o Coletive da Diversidade, reivindicamos muitas coisas. Fizemos palestras, cursos e seminários, fazíamos mural de protesto na cantina contra o que estava rolando no Brasil e criávamos ações.
Dessa forma, criamos um diálogo com a direção, com os outros cursos e alunes, que não se dava sempre de forma pacífica — tivemos atritos, muitas coisas aconteceram. Mas no fim conseguimos tudo o que queríamos.
Uma delas, da qual mais me orgulho, foi trocar as placas dos banheiros por espelhos escritos “Mulheres Cis e Trans”/ “Homens Cis e Trans”, embora hoje, enquanto pessoa não binária saiba que ainda poderia ter elaborado de outra maneira. Foi muito importante fazer isso naquele momento.
Um dos pilares da educação oferecida pelo Singularidades é a inclusão e o acolhimento à diversidade. O que você sentiu neste sentido ao iniciar a sua graduação em Letras? E ao longo do curso?
Acho que todos nós precisamos redefinir o que entendemos por inclusão. Um desses exemplos é a pós-graduação em que dou aula no Singularidades, que discute inclusão pelo viés racial, da deficiência e das questões de gênero e sexualidade. Um espaço não pode ser inclusivo se ele perpetuar racismo, capacitismo ou LGBTfobia.
Nesse sentido, discuti muito isso durante toda a graduação, principalmente com toda articulação feita pelo Coletive da Diversidade. Nos propusemos a ser didáticos, fizemos um curso de 10 módulos para falar de tudo isso. Algumas pessoas no Singularidades, envolvendo alunes, professores e funcionários, se propuseram dialogar com a gente e se abrir.
Muita gente me procurou depois e ainda me procura. Algumas ainda são um pouco resistentes, e na época se mostraram avessas ou indiferentes. Como todo espaço, tem suas potências e fragilidades. Sinto que se quisermos de fato discutir inclusão precisamos estar abertos, mais do que na defensiva ou se apegar a teorias tradicionais. Nada é imutável! Eu sinto que cavamos um espaço, mas que ele precisa continuar!
Que tipo de ações você acha mais urgentes para uma escola transformadora e acolhedora a toda forma de diversidade de gênero, sejam políticas públicas ou ações localizadas em cada instituição?
A primeira ação tem que ser a compreensão de que não existe inclusão sem discutir racismo, capacitismo, patriarcado e LGBTfobia, sem pensar em pessoas negras, indígenas, LGBTQIPA+, pessoas com deficiência, entre outros corpos que são dissidentes e que precisam ser pautados.
Esse pensamento caminha no mesmo sentido do pensamento interseccional, permite que, ao pensarmos em inclusão, não continuemos a excluir outros grupos necessitados desta política.
A segunda ação é consciência de que precisamos lutar em todas as esferas, mas não podemos esperar os documentos oficiais, o governo, a direção, os professores ou outras instâncias para começar a revolução. É preciso tensionar e agir, porque temos urgências!
Exemplo disso foi a luta travada pelo Coletive, que começou de baixo para cima, não esperamos ninguém, fizemos nós. E isso ressoou nos professores, na direção e em muitas outras pessoas.
O que eu acho mais urgente é que alunes, professores, diretores e toda comunidade escolar tome posicionamento e comece essa luta com as ferramentas que tem, e com o alcance que pode. Ao longo do trajeto, outras pessoas irão se juntar e muitas irão contra.
Assim é com todos os movimentos, mas o espaço que precisamos tem de ser cavado as pressas — e com força. Theodor Adorno, no livro Educação e Emancipação diz que são essas pessoas inquietas, inconformadas e persistentes que conseguem resistir, abrir caminhos em sociedade e criar uma educação emancipadora. É nisso que acredito!
A seu ver, no que a escola erra mais ao receber estudantes LGBTQIAP+, tendo em vista que vivemos num dos países que mais mata e invisibiliza estas pessoas?
A escola acha que ser neutro é ser hetero, é ser cisgênero, é ser branco e apartidário. Isso tudo tem posicionamento e ideologia, ser neutro neste sentido é apagar a diversidade, a pluralidade, é esconder a violência, é não denunciar a desigualdade. Não dá para ser neutro na escola, é preciso ter um posicionamento a favor da vida, da autonomia e da liberdade, com base nos direitos humanos e em tudo que construímos.
A escola erra em receber estudantes LGBTQIAP+ e não dar suporte a suas dores e cicatrizes, em marginalizar ainda mais, tal qual faz a família, a rua e as igrejas. A escola deveria ser um lugar de proteção aos nossos corpos, conhecimento das lutas que são muitas e são lindas, lugar de articulação contra a ignorância, a violência e a desigualdade.
Muitos professores não promovem essa discussão, porque não precisam e estão confortáveis no seu lugar cisgênero e/ou heterossexual. Mas é um dever ético pensar para além do próprio corpo, e saber que a sala de aula é plural e precisa de muitas coisas!
Ser multicultural não é só trabalhar com metodologias outras, é proporcionar um espaço de denúncia, cura e quebra de silenciamento de opressões históricas!
Como professore trans não-binário, você pode ensinar a inclusão e o acolhimento a partir de seu lugar de fala. Isso faz diferença na sua prática em sala de aula?
Completamente! Na minha dissertação de mestrado analiso teses e dissertações de autoras trans, negras, indígenas e pessoas com deficiência, em todos os trabalhos as autoras falam de si e das suas trajetórias, constroem suas pesquisas também com a sua vivência como objeto de análise.
Isso é lindo, porque além de produzir uma teoria que cura, elas estão produzindo uma pesquisa científica com profundidade, que agrega na luta e na criação de políticas públicas.
Quando estou escrevendo, quando estou dando palestras e formações, quando estou na sala de aula, me sinto curado. Sinto que estou falando de mim e de muitas pessoas mais, que estou rompendo o silêncio que me estagnou na infância e na adolescência, que estou produzindo a favor da luta, contra o preconceito, a violência e a morte, que estou a favor da revolução.
Por isso, trago para a sala de aula minhas vivências e minha trajetória como potencialidade da prática pedagógica, proporcionando uma quebra de paradigma e de distanciamento que muitas pessoas têm com os corpos trans e todas as questões que carregamos.
Que conselhos você dá para outras pessoas trans, gays, lésbicas, bissexuais e demais pessoas LGBTQIAP+ que queiram melhorar o mundo por meio da educação?
Eu diria assim: disseram que a educação não era para nós, mas nós somos para a educação! Eu sei que dizer isso implica em mexer com muitas memórias, nas quais não lembramos de nenhum professore, diretore LGBTQIAP+ e de muitas violências que vivemos nesse espaço. Mas imagina se tivéssemos isso na nossa infância ou na adolescência? Uma professora lésbica, bixa ou travesti?
Como tudo teria sido diferente, como a gente iria crescer se espelhando e não se odiando, como a gente iriaa ver que existe outro mundo possível. Hoje, milhões de crianças e adolescentes transviadas estão esperando por nós nas escolas desse Brasil, precisam ler o que estamos escrevendo, ouvir o que estamos cantando, consumir o que estamos produzindo.
Esse acesso possibilita uma transcendência não somente para os nossos, mas para todos os corpos que verão um mundo menos misógino, machista e cis heteronormativo. Esse espaço também é nosso e precisamos estar nele, transbordando toda a nossa potência afetiva, política e epistêmica!
Lucas Dantas é uma pessoa trans não-binária, pansexual, pertencente à comunidade LGBTQIAP+, educadore e pesquisadore de “Gênero, Sexualidade e Corpos Dissidentes na Educação”. Atualmente cursa o Mestrado em “Educação: História, Política e Sociedade”, na PUC de São Paulo. Ministra a disciplina Gênero e Sexualidade” na pós-graduação em “Inclusão e Diversidade” e “Psicopedagogia”, ambas no Instituto Singularidades.
Professores: que pautas LGBTQIAP+ vocês vêm tratando em suas aulas? E como sua escola acolhe estes estudantes? Conte para a gente!
Para saber mais: https://institutosingularidades.edu.br/produto/inclusao-escolar-e-diversidade-questoes-conceituais-e-instrumentalizacao-de-praticas/#1536097047459-56948a98-99f4
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