Muitas vezes tratada apenas nas aulas de História do Ensino Médio, a memória da ditadura civil-militar é um tema ainda mais urgente na escola atual. Para transpor a reflexão do viés histórico para um mais amplo, a literatura é uma das ferramentas mais potentes para se trabalhar o tema, combinada a outras linguagens e formas artísticas.
Partindo desta ideia, a professora Natália Araujo apresentou o TCC “O caos ditatorial no Brasil e a obra Em Câmera Lenta, de Renato Tapajós: uma experiência estética no resgate da memória”, em 2017. O livro foi escrito nos anos 70 e relembra a vivência do autor durante seu período de militância e prisão pelo governo militar. Sua publicação causou um novo período de encarceramento de Tapajós, além da censura.
Conversamos com Natália — que além de graduada em Letras, formou-se também em Pedagogia no Singularidades — sobre sua experiência imersiva neste tema, que se desdobrou também numa oficina para estudantes e público geral. Confira a entrevista a seguir.
Como surgiu o interesse em abordar a memória a respeito da ditadura no seu TCC?
Essa escolha se deu por querer conhecer e entender esse período histórico que não havia estudado enquanto estudante do Ensino Médio. Não sabia se era apenas uma questão das escolas públicas (de onde eu vim), ou do currículo escolar.
A única certeza que eu tinha era de que seria necessário ler e estudar muito sobre o tema escolhido, e a ditadura civil-militar era o assunto que eu queria me debruçar e entender. Além de tentar compreender sobre a literatura que nasceu deste período e, também, o porquê de não ser abordado esse tema nas escolas.
Como e porque você decidiu basear seu TCC em “Em Câmera Lenta”, obra reconhecida por sua urgência ao falar do período da repressão nos anos 60 e 70?
A escolha pela obra Em câmara Lenta (1977) teve a finalidade de apresentar a época por alguém que a vivenciou, ou seja, testemunhou e lutou contra as imposições governamentais. O testemunho fragmentado do autor apresenta os resquícios de um trauma cristalizado e memórias, bem como sua vontade de narrar e denunciar seu tempo.
Este livro pode ser visto como uma forma de construção histórica, visto que ele retrata parte da época de sua escrita. O romance que nasceu no período ditatorial nos mostra como os artistas acharam meios de driblar a censura e retratar as imposições do Estado.
Poderia citar uma extensa lista de romances que abordam questões referentes ao período ditatorial brasileiro e às mazelas por ele desencadeadas. Sobretudo, seria possível levantar-se um amplo número de obras que trazem em sua composição as cicatrizes da censura de um tempo regido pelo autoritarismo e pela violência, que não só fez ruir os pilares políticos, econômicos, históricos e sociais de uma nação, mas também abalou profundamente as estruturas pessoais e emocionais dos indivíduos.
Você desenvolveu uma oficina a respeito da literatura no período da ditadura civil-militar para as alunas e os alunos do Sing, durante o seu estágio no curso de Letras. Pode contar um pouco sobre como foi o planejamento e os objetivos desta atividade?
O plano de aula ficou organizado em cinco encontros, de quatro horas cada. A oficina aconteceu aos sábados no Singularidades, no período matutino, e esteve aberta ao público geral, universitário ou não.
A oficina teve como intuito mostrar ser possível trabalhar com o assunto, independente dos conhecimentos e realidade de classe social. Tendo, assim, como objetivo central, apresentar, por meio da literatura, o período em questão.
Como a oficina se desenvolveu?
Para iniciar o curso, pedimos que os alunos se apresentassem e falassem, brevemente, se haviam aprendido sobre esse tema
nas escolas em que estudaram. Foi notório perceber que quase todos não haviam tido aulas sobre o período ditatorial e que, se tiveram, havia sido nas aulas de História.
Mesmo tendo esse contato com a história, não trabalharam e nem receberam indicações de literatura a respeito dessa temática, a não ser os alunos que estavam matriculados no curso superior de Letras, do Instituto Singularidades.
Ao longo dos nossos encontros, foram propostas atividades diversificadas, como dinâmicas, conversas, trabalhos em grupo, vídeos e um aparato literário para discutir e pesquisar sobre o período histórico retratado. Esse percurso nos fez chegar até o romance Em Câmara Lenta (1977), em que lemos diversos trechos para entender a estrutura e, também, analisar partes do enredo.
Realizamos uma atividade de estudo do meio no Memorial da Resistência de São Paulo com visita guiada, atividades artísticas elaboradas pelos alunos que compuseram uma interferência no espaço da instituição, e uma conversa com um ex-militante nos proporcionaram uma nova visão e conscientização sobre o tema. O Memorial da Resistência de São Paulo, que ocupa a antiga sede Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – Deops/SP, do é uma instituição que preserva memórias da resistência e da repressão política do Brasil republicano.
Como foi a recepção e que retorno você recebeu dos participantes?
Acredito que tratar desse tema na oficina contribuiu para a mudança de consciência e transformação sobre o assunto em questão. Alguns alunos compartilharam suas impressões sobre a jornada, e entre eles, houve quem num primeiro momento sentiu-se reticente ao participar, por se tratar de um tema pesado e triste, mas acabou reconhecendo a necessidade de desenvolver um olhar diferente para esta época da história brasileira.
“As várias formas de transferência de conhecimento para os alunos em sala de aula foram leves e motivacionais. Percebemos que os professores podem abordar o tema em sala de aula de diversas formas e em diversas disciplinas, a passagem do conhecimento não fica restrita apenas as aulas de História”, comentou a participante Luciene Araújo, que não havia aprendido nada sobre o período civil-militar em sua etapa escolar.
Outros, que já haviam tido contato com o tema durante a educação básica, valorizaram a oportunidade de aprofundar seus conhecimentos e desenvolver senso crítico a respeito daquele momento da história recente do país, por meio da análise de materiais como literatura, música e artes.
A visita ao Museu da Resistência foi citada como por vários participantes como uma oportunidade de mergulhar nos fatos acontecidos nos anos da ditadura, por meio de uma vivência profunda e emocionante. “Gostei muito também da visita ao Memorial da Resistência (o lugar pode nos dar a noção fidedigna dos acontecimentos através dos arquivos de imagens e depoimentos dos presos). Foi emocionante e esclarecedor!”, comentou Diogo Pereira.
Se em cinco aulas foi possível atingir o objetivo e plantar a semente do conhecimento em nossos alunos, imagina as escolas tendo os ciclos de Ensino Fundamental II e Ensino Médio? O tempo deve ser repensado nas escolas, a organização curricular deve ser modificada e as aulas de literatura precisam se tornar mais atrativas.
Na sua opinião, como a literatura— tanto como registro biográfico quanto ficção — pode ser uma ferramenta importante para a professora e professor do Ensino Médio e do Fundamental tratar deste tema cada vez mais (tristemente) controverso, dado o contexto político-social em que vivemos?
Essa pesquisa possibilitou uma visão mais crítica sobre o papel fundamental que a literatura tem em trazer prazer, mas também fruição e criticidade na formação do leitor. No entanto, observou-se que muitos obstáculos ainda são colocados nos caminhos da escolaridade.
Alguns deles podem ser encontrados na formação do professor, bem como na visão de organização curricular das escolas e, por fim, mas tão impactante quanto os outros, de tentar cumprir as listas de vestibulares das grandes universidades, dificultando a inserção da literatura contemporânea nas aulas.
A literatura contemporânea fica normalmente em segundo plano, perdendo sua posição pelas escolhas de livros que estão nas listas de vestibulares ou no final das escolas literárias, que são trabalhadas normalmente em linearidade.
Acredito que a leitura traz conhecimento e novas visões sobre a vida e o mundo ao qual estamos inseridos. Por isso, ela é necessária na formação de cada sujeito. Essa arte nos proporciona reflexões, questionamentos, catarse, prazer, novos significados, criticidade, além de nos humanizar. Isto posto, acredito ser uma excelente ferramenta para o professor tratar sobre o tema em questão, fazendo link com os dias atuais.
Sobre esses eventos passados, podemos estabelecer relação entre memória e história, de modo a reconstruir um passado que tentou se manter esquecido. Recordar compete a não repetir erros passados, isso cabe a cada um de nós, bem como saber o que fazer depois com os conhecimentos adquiridos.
Natália Araujo é geminiana, mãe, poeta e educadora. Possui graduação em Pedagogia e licenciatura em Letras – Português, ambos pelo Instituto Singularidades.
Para saber mais: http://institutosingularidades.edu.br/novoportal/
Entre em contato: [email protected]