Certa vez, a cantora e compositora Cassia Eller disse que escolheria a calçada ao ser indagada em uma entrevista se preferia praia ou campo. Identifico-me com o que ela respondeu. Há muitos anos, numa época de Copa do Mundo, resolvi pintar na rua onde eu morava uma enorme bandeira. Isso foi no Morro do Querosene e eu era nova no bairro.
As crianças da vizinhança foram se aproximando lentamente, com olhares de curiosidade. “Oi, quer ajudar?” arrisquei. Imediatamente pegaram pincéis, rolinhos e as cores verdes e amarelas. Logo, a vizinha nova e desconhecida se transformou na pessoal legal que promove atividades artísticas diferentes para as crianças.
Num domingo lindo de sol, apareci na rua, a fim de buscar alguma coisa para fazer, algumas crianças correram em minha direção, perguntando: “O que vamos fazer hoje?” Eu olhei para os lados, pensei um pouco… “Vamos pintar um poste.” “Um poste?” Espanto geral.
Eu mesma, sem me dar conta do que tinha dito, mas sem querer titubear diante daqueles olhinhos que brilhavam com a novidade aventureira, disse simulando uma certeza óbvia: “Sim, vamos pintar um poste!” “Mas como?”
Eu disse: “Como?” Pensando que eu teria que ter rapidamente uma ideia para aquela indagação assombrosa, respondi com naturalidade: “Ora, pintando, uai. Vamos entrar e ver o que temos de material.” Encontramos no meu atelier um saco com retalhos de chitas, com belas estampas de flores, num jogo de cores vivas e caipiras.
Sentamos no chão e com tesouras nas mãos passamos a retirar as flores das chitas. A imperfeição dos recortes ficou perfeita. Aprendi com as crianças que assim é que realmente deveriam ser cortadas, pois o bonito deste tipo de tecido é justamente o contraste que se obtém das cores das flores com a forte cor contrastante do tecido.
Mobilizar para educar
Naquela época, não fazíamos um projeto prévio antes da colagem, como fazemos atualmente: começamos a passar a cola branca no verso das flores e fixamos no poste. Apesar do caráter aleatório na composição das flores havia, evidentemente, uma supervisão minha na ocupação dos espaços.
Pensar no formato cilíndrico é considerar que um espectador possa apreciar a arte igualmente de todos os lados, sem privilegiar ou ignorar nenhuma parte. Isso é um detalhe muito importante, pois não estávamos trabalhando em uma superfície bidimensional.
Para esse entendimento, circulávamos com frequência nossos olhares em torno do poste, para verificar a harmonia entre as partes e o todo. Algumas mães também estavam conosco, engajadas e curiosas.
As pessoas que passavam na rua paravam, elogiavam o trabalho, perguntavam o que estávamos fazendo, o clima era ótimo. Ali nasciam amizades, um projeto de cidadania, de ocupação criativa, um projeto político, social, democrático, integrador, inclusivo, sem nenhum tipo de discriminação.
Percebi que o que estávamos fazendo naquele domingo era o que deveria acontecer na educação: projetos que mobilizassem o interesse da criança, que respeitassem o tempo de cada um, sem burocracia, sem cobrança, com liberdade de ir e vir, com ludicidade e criatividade, respeito e verdade.
Pensei que as escolas poderiam oferecer um ambiente mais acolhedor, que possibilitasse a integração com o entorno, com a cidade, com os pais, numa convivência harmoniosa entre as crianças de diferentes idades, onde cada uma pudesse contribuir com aquilo que é capaz de fazer naquele momento.
Acreditei que isso seria possível. Comecei a refletir sobre uma nova escola, onde as atividades propostas realmente fizessem sentido, dialogassem com a vida cotidiana de cada estudante e que as disciplinas conversassem entre si.
Um ambiente no qual a arte pudesse ser a linguagem de expressão mais contundente no currículo escolar, um meio para dar voz aos alunos, aos seus pensamentos, seus desejos, seus conflitos, angústias, suas demandas, em geral.
Tudo aquilo que estávamos vivenciando não era pouco! As escolas não criam contato significativo com a realidade: separam a ação do pensamento, criam o tempo todo rupturas que interrompem o envolvimento das crianças em suas atividades. Toca o sinal, e as crianças são obrigadas a desconectar um botão interno e ligar outro, completamente diferente.
Ouvem comandos autoritários que determinam: “Criem! Vocês têm 45 minutos para exprimir suas emoções, ideias e sentimentos, péééééé (o sinal)”. “Agora façam contas de multiplicar, péééééé. “Agora leiam, péééé”, “Exercitem-se, péééééé”. “Falem inglês, péééééé.”
Recreio! Correria geral! Abrem-se as portas das salas e as crianças saem correndo, esbarrando-se, empurrando-se, aos gritos de professores ou bedéis: “Não pode correr!” “Mas não pode correr nos corredores?” Quanta loucura! E a educação precisa ser desse jeito?
Criança precisa de desafios
Era evidente o prazer e a paz que mobilizavam todos nós. Criança precisa de desafios, do inédito, da pesquisa, da criação e da imaginação. “A criança precisa manipular o belo”, disse Renata Meirelles. Depois da colagem das chitas fomos pintar o poste, onde não havia a colagem.
Cor é vida, cor dá vida, cor traz um novo sentido e ressignifica. As cores podem ser misturadas, podem ser reinventadas e multiplicadas. O cheiro da cor, sua espessura, textura, a luz que dela emana, o poder de cobrir, de se misturar, de realçar, de combinar, compor e de contrastar são qualidades encantadoras, que despertam na criança a vontade de manipulá-las, como se estivessem diante de elementos alquímicos, numa experiência importante.
Um trabalho artístico sem que ninguém precisasse ser um bom pintor, um bom “aluno” de artes. Uma obra democrática, na qual cada um podia contribuir com a sua expressão, sem certo ou errado, sem julgamentos de qualquer espécie. Qualquer um que passasse na rua, criança, jovem ou pessoas mais velhas, poderia dar sua pincelada, deixar sua marca.
Com a chegada da noite a luz do poste acendeu e nosso trabalho ficou iluminado com muita energia, uma luz que vinha de cima para baixo, e outra que emanava do próprio poste.
Ana Tatit é mestre em Artes Plásticas pela Faculdade Santa Marcelina (FSM) e graduada em Licenci Visuais pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). É professora do curso de Pedagogia e coordenadora do curso de Pós-graduação Latu Sensu “A Arte de Ensinar Arte”, ambos no Instituto Singularidades.
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