Cada sociedade necessita de uma imagem à sua semelhança. Para o bem e/ou para o mal. Facebook, Instagram e Whatsapp são marcas inequívocas do nosso tempo. Mais que isso, todas elas juntas são uma pista evidente que as experiências fotográficas vão se multiplicar de tal forma que os tempos atuais serão apenas pré-história desse movimento.
Esse tempo de escrever a história por meio das imagens não se restringe apenas ao mundo de quem trabalha com arte e jornalismo. A fotografia vem ocupando espaços em vários campos do saber: ciência, antropologia, psicologia, meio ambiente, movimentos sociais e educação. Nem vou me reter ao universo das celebridades, subcelebridades, os famosos “quem” e afins. Não são o foco por ora.
Por meio do acesso aos recursos de produção de imagens (fotografar, editar, dar tratamento, postar) as pessoas estão aprendendo a “ler e escrever” imagens. E estão aprendendo no seu cotidiano, sem se dar conta de que estão lidando com fotografias a todo instante.
Nunca foi tão fácil tirar fotos. Hoje câmeras digitais e celulares possibilitam fotografar em todas as direções: filhos, viagens e a sala de aula também. Estamos viciados em apertar o botão. Chamo esse impulso de “incontinência fotográfica”. Depois, ficamos com uma sensação estranha. É tudo a mesma coisa. Imagens repetitivas, sem força, sem significado.
Acontece na hora do educador tomar decisões sobre a documentação pedagógica também. São tantos arquivos de fotos que não sabemos que história merece ser contada. Não sabemos quais imagens selecionar diante de tantas opções. São novas necessidades que surgem diante de uma linguagem não verbal.
Por que não pensei antes de fotografar? Como planejar o tempo/espaço a ser fotografado? Quais fotos aproveitar, quais deletar? Por que a câmera não fotografa do jeito que eu quero? Como transformo o que eu vejo em documentação?
Considerando essas questões, não podemos pensar a documentação pedagógica como o simples ato de tirar fotos ou de escolher uma boa câmera. Se pensássemos desse jeito, qualquer tutorial disponível nos sites daria conta desses problemas.
O olhar como ato de decisão
A câmera é “burra”, ela não pensa. É apenas a extensão do olhar de quem a manipula. E esse alguém que fotografa pensa, decide o que mostrar e o que ocultar. O ato fotográfico sempre pede decisões de alguém, sobre os recortes que fazemos da realidade. E também decisões em nome de interesses, ideais e projetos.
Não há foto neutra, sem intenção. Toda imagem carrega consigo um pronunciamento, uma mensagem. Podemos dizer que a fotografia revela como pensamos e agimos enquanto educadores. Ela, fatalmente, vai nos denunciar sobre aquilo que realmente entendemos sobre educação e sobre a infância.
Por essas razões, antes de tudo – antes de perguntar sobre a melhor câmera, a melhor lente – é preciso perguntar o que é a fotografia, por que fotografo. A fotografia não está fora de nós. Ela está dentro, como uma “câmera interna” que pede decisões sobre aquilo que vejo. Se atingirmos essa consciência fotográfica, o modo como enquadramos o mundo da criança, melhor enxergaremos o que elas estão querendo nos mostrar e não apenas o que queremos ver.
Walter Benjamin, filósofo e sociólogo judeu alemão associado à Escola de Frankfurt, no começo do século 20 se questiona ao profetizar que “já se disse que ‘o analfabeto do futuro não será quem não sabe escrever, e sim quem não sabe fotografar’. Mas um fotógrafo que não sabe ler suas próprias imagens não é pior que um analfabeto?”.
Todo mundo está “lendo e escrevendo” fotos. O cálculo estimado é de que todos os celulares do planeta, juntos, fazem 4 bilhões de fotos por dia. Na maioria das vezes atuamos como analfabetos funcionais, vivendo em um mundo sélfico, facebookiano, sem ter muito o que dizer além do prato que comemos no almoço, ou dos brothers nos embalos de sábado à noite, quando todos estavam assustadoramente felizes.
O próximo passo desse movimento irreversível será ler e escrever melhor. “Quem conhece e desenha bem as letras é um ótimo calígrafo”, diz o fotógrafo húngaro André Kertész. Ele conclui que “o bom escritor tem que ter algo a dizer”.
A questão da professora e do professor, atentos à escuta da infância, é ter algo a observar, a interpretar e a dizer junto com as crianças através da fotografia, essa linguagem “estrangeira”. Ela chegou apenas como mera ilustração do código verbal escrito e hoje se instala de vez com seu poder de significância e sensibilidade no universo da educação.
André Carrieri, fotógrafo e educador, é professor do Curso de Verão Ateliê de Fotografia para Documentação Pedagógica, no Instituto Singularidades
Para saber mais: www.institutosingularidades.edu.br
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