“O homem pode ser definido como um ser que fala e não como um ser que escreve”, afirma Luiz Antonio Marchuschi, (Leal; Góis, 2012). No entanto, estudos diversos, bem como a análise de materiais didáticos e de planejamentos escolares apontam para a tradição escolar que valoriza a escrita em detrimento do oral. Não raras vezes, o acesso à escolaridade relega a um segundo plano a habilidade de fala e evidencia o saber “das letras escritas”, como se esta fosse a (única) habilidade socialmente necessária para a participação efetiva no mundo, para o “sucesso” pessoal e profissional dos que a conquistam.
“Letras escritas” e “sucesso” estão entre aspas, não à toa. As letras escritas, ou seja, o desenvolvimento das habilidades de leitura e de escrita (codificação, decodificação, compreensão da mecânica da língua) não garantem o sucesso para a participação efetiva de seus usuários nas mais diversas situações comunicativas que se apresentam diariamente — uma vez que a compreensão de mundo se dá por meio de linguagens diversas, entre elas, a linguagem falada.
O desenvolvimento da habilidade do discurso oral — que difere da aquisição da língua, na primeira infância — não é inerente ao ser humano. Contudo, muitas vezes, esta habilidade não é aprendida / ensinada na escola (tampouco a habilidade de escuta, tão necessária quanto outras, citadas anteriormente).
Há mais de duas décadas, documentos oficiais de abrangência nacional — Parâmetros Curriculares Nacionais, de 1997; Base Nacional Comum Curricular, de 2018 — ressaltam a necessidade de “a escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral nas diversas situações comunicativas” (PCN / LP, 1997, p. 320); de “possibilitar a participação significativa e crítica nas diversas práticas sociais permeadas / constituídas pela oralidade, pela escrita e por outras linguagens” (BNCC, 2018, p. 66).
A oralidade, nesse sentido, precisa adentrar o espaço escolar como objeto de ensino, e não simplesmente no âmbito da oralização (fluência, ritmo, entonação) ou como pretexto para o desenvolvimento de habilidades outras (explicação, argumentação em diversas situações escolares).
De acordo com Beth Marcuschi (Glossário Ceale), a oralidade a ser trabalhada no espaço escolar deve ser, sobretudo, a que favorece o desenvolvimento da proficiência do aprendiz em gêneros orais formais públicos, ou seja, em gêneros que circulam em contextos de uso linguístico pouco comuns no dia a dia e para os quais exige-se um conhecimento que não figura no saber cotidiano Glossário Ceale).
O desenvolvimento da proficiência em gêneros formais públicos, diversos, rompe com o paradigma do ensino oral integrado (Ferraz; Gonçalves, 2015), que está ligado exclusivamente ao ensino relacionado às situações escolares. Prioriza, por conseguinte, o ensino oral autônomo (Ferraz; Gonçalves, 2015), pautado no “uso da modalidade oral da língua em práticas sociais e discursivas” (Marcuschi, Glossário Ceale).
Para isso, é preciso que os educadores tenham uma intencionalidade — que deve ser comunicada aos educandos; e um planejamento (tanto para o educador quanto para o aluno) das etapas de ensino e de aprendizagem da produção do discurso oral (gênero, forma, conteúdo e suporte daquilo que se deseja comunicar).
Habilidade de fala, uso de tecnologia e compartilhamento de saberes
Se o desenvolvimento da habilidade do discurso oral não é inerente ao ser humano, faz-se necessário que seja ensinado / aprendido. Mas não basta que a criança e o jovem aprendam a falar uns com os outros e apenas acerca das situações do cotidiano.
É preciso que desenvolvam condições de compartilhar saberes; de comunicar conhecimentos construídos; de disseminar impressões, opiniões, descobertas. Para isso, é preciso que a escola seja lugar de fala. De escuta. E, principalmente, de compartilhamento de saberes.
Vivemos tempos tecnológicos, tempos em que a velocidade da comunicação impressiona (e, às vezes, assusta). Logo, faz todo o sentido valermo-nos da tecnologia e a trazermos para a sala de aula, a fim de desenvolver a habilidade de fala, dando sentido ao que será comunicado, compartilhado.
Assim como acontece ao produzirmos ou solicitarmos a produção de textos escritos, a produção do texto oral também é realizada em etapas; requer um ou mais interlocutores; demanda uma situação comunicativa. E a tecnologia pode ser uma ferramenta importante — mas não a única — para o desenvolvimento da habilidade de fala com a atribuição de um sentido maior: dizer algo interessante a alguém ou a várias pessoas.
Uma criança, um jovem, é um ser em formação, curioso e ávido por descobrir o mundo. E por dividir descobertas. Bartolomeu Campos de Queirós (Museu da Pessoa, 2012) afirma que
“a beleza é tudo aquilo que você não dá conta de ver sozinho.” Quando você encontra uma coisa muito bonita você fala assim: “Ih, Fulano devia ver isso.” Você vê um pôr de sol muito bonito aqui na janela, você fala assim: “Fulano podia estar aqui comigo.” Você vai num museu e vê um quadro, fala assim: “Mas era Fulano que devia ver isso.” Você vai num filme, sai e fala assim: “Não, mas não era eu que devia ver esse filme, era Fulano de Tal.” A beleza não cabe em você. Ela não cabe. (…) Mas eu acho que a beleza é profundamente triste quando você está sozinho. Você não dá conta dela. Ela pesa muito. Então você tem que passar para alguém”. (Queirós, 2012)
Existe muita beleza em cada descoberta. Mas, quando não compartilhamos a beleza da descoberta, ela se torna — conforme afirmou Queirós — profundamente triste. Silenciosa. Vira conhecimento acumulado, sem função, sem uso, sem sentido.
É sobre descobertas, belezas e compartilhamentos que trataremos no curso “A produção oral no contexto escolar: o planejamento e o processo de ensino-aprendizagem das situações comunicativas de acordo com a BNCC”. Sobre falar, sobre ouvir, sobre descobrir, sobre partilhar — na escola e para além dela.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a base. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf>. Acesso em: 25/02/2019.
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf> Acesso em: 25/02/2019.
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BUENO, B.; COSTA-HUBES, T. C. (org.). Gêneros orais no ensino. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2015. 376 p.
GOMES, S. dos S. Práticas de leitura e capacidades de linguagem na escola. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017. 326 p.
LEAL, T.; GOIS, S. (org.). A oralidade na escola: a investigação do trabalho docente como foco de reflexão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. 200 p.
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SCHWARTZ, S. Falar e escutar na sala de aula: propostas de atividades práticas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. 96 p.
SIGNORINI, I. (org). Investigando a relação oral / escrito. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2001. 192 p.
Vivian Maria Marcondes é Doutoranda e Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP); pós-graduada em Fundamentos do Ensino da Matemática (Mathema); pós-graduada em Psicopedagogia (Universidade Metodista); graduada em Pedagogia. Atuante há mais de 20 anos como professora, em escolas da rede particular e pública de São Paulo. Formadora de professores em cursos de extensão universitária.
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