Faz pouco tempo – menos de 20 anos, na verdade – que o ensino básico passou a incluir a história e a cultura africana, afro-brasileira e indígena, num esforço de lançar um olhar descolonizador sobre as origens do Brasil.
Foi apenas com a Lei 10.639/03 e, mais tarde, a 11.645/08 que se aprofundou no país a necessidade destas questões serem discutidas ao longo de todos os anos do ensino fundamental e médio, em todas as redes de ensino e em diferentes disciplinas.
Isso ajudou a distanciar o ensino predominantemente eurocêntrico e afastado da realidade de um país no qual grande parte da população tem ascendência negra ou indígena, ainda que não saiba (ou fale) muito sobre isso.
Conversamos com a professora Patrícia Vannetti Veiga, docente da licenciatura em Letras do Singularidades, sobre como incluir a literatura, a filosofia e a mitologia indígenas em sala de aula, sugestões de autores e pensadores e como o educador pode manter-se atualizado para inspirar seus alunos a respeito destas realidades tão próximas e, ao mesmo tempo, distantes. Confira a entrevista a seguir.
Desde 2008, as escolas brasileiras das redes privadas e públicas devem seguir a lei que determina a inclusão das culturas afro-brasileira e indígena nos conteúdos do ensino fundamental e médio. Como você vê essa inclusão acontecendo? Ela tem sido efetiva?
Há muita diversidade de povos – mais de 300 no Brasil, com mais de 240 línguas faladas, de acordo com o último Censo – e são sociedades que têm lógicas e referências muito próprias.
Por isso, eu acredito que unificar, não falar de “povos” mas de “povo indígena” atrapalha essa muito a efetividade do trabalho curricular. Essa visão genérica do índio, que foi construída na colonização, que os portugueses construíram reduz as possibilidades de aprendizado.
Então, eu acho que por mais que hoje em dia haja mais instrumentos e materiais pra esse trabalho nas escolas, isso ainda é pouco. Acredito que essa inclusão ainda está caminhando devagar.
Converso com muitos professores que falam sobre a falta de material e de conhecimento que eles têm para trabalhar com estes temas em sala de aula. A gente sabe que, muitas vezes, a rotina do educador é sobrecarregada, nem sempre conseguimos dedicar-nos a aprender coisas novas e colocá-las em prática.
Muitas vezes, essa inclusão acaba ficando restrita a abril, o “Mês do Índio”, e a disciplinas como literatura, artes e história, que são as que preveem este tema em seu planejamento. Mas como eu disse antes, ainda acredito que temos um caminho longo pela frente, para que ela se torne efetiva.
Como o professor pode estimular o interesse dos estudantes sobre estes temas?
Essa diversidade de povos e culturas rende um material muito rico. Cada povo tem um jeito de produzir sua arte, seus desenhos, sua história, seus conhecimentos e modo de vida, que variam até conforme o tipo de bioma da região em que ele vive.
Então, acredito que há muita variedade de conhecimento, diversas narrativas, um jeito de olhar para o mundo e para as estrelas que desperta bastante interesse nos alunos.
Tenho refletido muito sobre isto, visto que a melhor forma de estimular este interesse é por meio da aproximação entre o conhecimento indígena e a realidade dos estudantes.
Nós vivemos em um país em que muita gente não conhece seus antepassados e muito deles são indígenas, mas não reconhecem essa história (que foi negada ou mesmo silenciada), o que não acontece com que tem origem, por exemplo, europeia.
Eu vejo essa aproximação a partir dessa tradição ancestral como um bom caminho para estimular o interesse. Por meio da aproximação com o conhecimento – não o criado pela colonização, em que o indígena era tratado como aquele outro distante, o selvagem –, a gente traz para perto, apresenta novas referências, saindo um pouco desse imaginário colonial, tornando o conteúdo mais atrativo para o aluno.
Como trabalhar esses conteúdos em sala de aula, no caso da literatura e da gramática?
Lembrei-me da fala de um amigo indígena, que me disse que os conhecimentos dos povos nativos nunca são tratados de maneira separada. Por exemplo, você vai falar das artes, dos desenhos e dos grafismos produzidos por algumas nações.
Tudo isso está ligado às mitologias, porque os desenhos contam histórias que estão conectados a um tempo antigo, ao conhecimento das técnicas de confeccionar os utensílios, da agricultura, da caça, da pesca e das brincadeiras das crianças.
Eu sei que a escola é dividida em disciplinas, mas é interessante pensar que o conhecimento indígena já traz essa integralidade. Encontrar formas de integrar estes conteúdos de uma forma transdisciplinar é muito rico.
Podemos construir conhecimentos a partir da experiência: as crianças podem ser educadas de outras maneiras, o ensino pode se dar em vários espaços que não só em sala de aula, ou a própria formação do olhar para o outro e para a natureza pode ser feita de outra forma.
Do mesmo jeito que as crianças não indígenas aprendem a lidar com as letras, há muitos povos indígenas que chamam os grafismos de letras e sílabas gráficas. Então, é toda uma alfabetização por meio de imagens gráficas, que expressam um outro jeito de olhar para o mundo.
Não é só conteúdo, mas sim todo um método que se pode explorar para trabalhar com essa questão de uma maneira não só conteudista, mas também construída a partir de novas didáticas, que compõem novos métodos de ensino.
Os livros de autores indígenas geralmente são multimodais, trazendo linguagem verbal e não-verbal, por meio dos desenhos, que também contam a história.
A gente consegue alcançar letramento muito mais efetivo por meio deles, por ser uma literatura que traz uma grande variedade de enredos. Os conhecimentos por trás das histórias são muito profundos e podem propor vários caminhos interessantes.
Na parte da gramática, pode-se trabalhar com a diversidade das línguas indígenas, que em geral oferecem grande variedade de recursos. Também podemos analisar a influência destes idiomas, principalmente os de origem tupi e guarani na formação desse português que a gente fala no Brasil, seja por vocabulário ou pelo jeito como falamos.
Que autores indígenas você considera imprescindíveis para o professor trabalhar em sala de aula, primeiro com os alunos do fundamental, e depois os do médio?
Vou citar o Daniel Munduruku, que foi pioneiro nessa questão de publicações, o Kaká Werá, o Olívio Jekupé, o Cristino Wapichana, o Edson Kayapó, o Edson Krenak, o Ailton Krenak, a Márcia Kambeba, a Eliane Potiguara, a Graça Graúna, o Ely Macuxi, a Auritha Tabajara, o Emerson Guarani, o Tiago Nhandewa, entre outros.
Hoje em dia há um grande número de autores e intelectuais indígenas que devem ser valorizados tanto no ensino fundamental quanto no médio.
Além disso, tem essas produções mais coletivas, que são feitas por algum povo e que também são materiais interessantes para se trabalhar no ensino fundamental.
É interessante usar estórias que contem como é a vida numa aldeia, os rituais de iniciação que preparam os jovens para a vida adulta, que são realizados em cada povo e sempre de forma diferente.
Para as crianças e adolescentes que tenham passado por esse processo de crescimento e de ganhar maior responsabilidade, falar um pouco sobre isso tendo como base os livros de literatura infanto-juvenil, que trazem essas estórias, pode ser muito bom.
Livros que que tratam de outros temas, como o meio ambiente, as práticas culturais e a formação do indígena também são minhas sugestões para o ensino fundamental.
Já para o médio, acredito que aprofundar-se um pouco mais e trabalhar mais com autores que falam sobre a sociedade indígena, como estes indivíduos a veem e como eles olham para a nossa pode funcionar muito bem.
Recomendo, por exemplo, o livro “A Queda do Céu”, do Davi Kopenawa, em que ele faz todo o relato da formação dele enquanto pajé, bem como das lutas que ele travou, como a retirada dos garimpeiros nas suas terras. Ele faz uma análise dessa sociedade não indígena de uma forma muito potente.
Também indico a Eliane Potiguara, que faz uma reflexão sobre como é ser uma mulher indígena, de como o Brasil se formou do ventre destas mulheres; o Kaká Werá, que também traz pensamentos sobre a influência tupi no brasileiros e na cultura brasileira, e o próprio Daniel Munduruku, que escreveu textos não só sobre o movimento indígena, mas sobre esta presença na vida não-indígena e as tensões que este encontro gera.
Considerando que esses alunos já tiveram uma formação na qual tenha sido incluída um pouco dessa diversidade nos povos indígenas já no fundamental, no ensino médio pode-se entrar um pouco nesse caminho das autorreflexões, da autoconsciência, a partir de quem são e de como realmente a presença indígena foi tratada – e ainda é – no Brasil.
Que conselhos você dá ao educador que está fazendo seu planejamento para o próximo ano letivo, e deseja incluir autores, aspectos culturais, históricos e atualidades indígenas nele?
O conselho que eu daria é que ele procure livros que tragam o conhecimento dessas estórias indígenas e, a partir daí, tente trabalhar com essas questões ao longo do ano. Não espere só o mês de abril para falar dos índios, mas tente incluir um pouco desses saberes ao longo do trajeto letivo, a partir de diversos temas, abordagens e conteúdos.
Dessa maneira, eu acho que a gente deva tratar deste conhecimento de uma maneira mais constante, continuada, considerando que muito das nossas origens, da nossa ancestralidade passa pela presença indígena.
Acho que quanto mais a gente for despertando para isso e tratando a cultura indígena de uma maneira não fragmentada, mais benefícios haverá para o aprendizado dos alunos.
Gostou das nossas sugestões para trabalhar com estes temas tão fundamentais com os seus alunos? Compartilhe suas opiniões com a gente?
Por fim, o que eu indico basicamente é acompanhar mais esse universo. Hoje em dia há tantos escritores, intelectuais e artistas indígenas que estão produzindo coisas que levam a gente a refletir tanto, e ainda nos aproximar dessas origens.
A partir daí, tentar trazer para os diversos momentos do período letivo esse conhecimento, dialogando com as outras disciplinas.
Patrícia Vannetti Veiga é graduada em Pedagodia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Ciências Sociais/ Antropologia pela Universidade de Campinas (Unicamp). É mestre em Linguística pela Unicamp e doutoranda em Antropologia Social, Etnologia Indígena pela Universidade de São Paulo (USP). É professora da graduação em Letras do Instituto Singularidades.
Gostou das nossas dicas para trabalhar a cultura indígena com os seus alunos? Conte para a gente!
Para saber mais: www.institutosingularidades.edu.br
Entre em contato: [email protected]