O ano de 2019 foi de enormes desafios para a equipe pedagógica da Turma do Jiló, associação sem fins lucrativos criada em 2015 para promover a educação inclusiva de alunos com ou sem deficiência. Em paralelo às duas frentes do projeto já estabelecidas — música como ferramenta inclusiva e acolhimento às famílias dos estudantes com deficiência —, começou o trabalho de desenvolvimento profissional, com o atendimento a professores e gestores de escolas municipais da rede de ensino paulista.
Foi um curso específico para esse público, estruturado em dois encontros quinzenais, com duração de 90 minutos cada e realizados durante a Jornada Especial Integral de Formação (JEIF), que integra o cronograma de trabalho dos educadores.
O perfil de cada escola atendida (localização, público-alvo, corpo docente e suas relações os gestores) era extremamente diverso, o que tornou o curso, de certa forma, específico para cada instituição e resultou em rumos e resultados distintos.
A Escola das Pitangueiras (nome fictício) foi a que nos trouxe as situações mais complexas. Houve mudanças significativas em seu corpo docente e diretivo; uma das saídas foi a da responsável pelo Atendimento Educacional Especializado (AEE) e, por razões burocráticas, o ano letivo iniciou sem um profissional para esse serviço.
Além disso, em comparação com outras escolas municipais, a Pitangueiras estava recebendo um número bem maior de matrículas de alunos com deficiência, em parte, segundo seus gestores, por ser totalmente plana e de acessos simples.
Segundo os professores, o número elevado de alunos em processo de inclusão tem trazido desafios enormes para a toda a equipe. Logo ao chegar, sentimos os professores resistentes às discussões do início do curso, principalmente quando defendemos nossa posição diante da reparação histórica que ocorre nessa área, em consequência do desenvolvimento científico, dos movimentos sociais e do aparato político-legal.
Um marco dessa reparação foi o fato de o Brasil ter se tornado signatário da Declaração de Salamanca em 1994 e, consequentemente, assumido o compromisso de adequar o sistema de ensino a uma perspectiva inclusiva de educação, de modo que nenhum educando ficasse às margens dos processos de ensino e de aprendizagem.
Do ponto de vista legal, ainda que a Portaria no 86, de 17 de junho de 1971, do Ministério da Educação e Cultura tenha instituído um grupo-tarefa para estudar a condição de pessoas com deficiência e superdotação, e o Decreto no 72.425, de 3 de julho de 1973, tenha criado o Centro Nacional de Educação Especial (Cenesp) e ensaiado legislar sobre a educação de alunos com necessidades adaptativas, foi somente em 2015 que passou a vigorar a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) (BUENO, 2011).
A despeito do amparo legal, ainda estamos na fase de superar o paradigma de integração, comumente confundido com o de inclusão. No primeiro modelo, a criança com deficiência é integrada a um espaço pensado exclusivamente para estudantes sem deficiência, acolhendo, por exemplo, uma criança com cadeira de rodas em uma escola que não dispõe de banheiro acessível ou rampas de acesso, ou com Síndrome de Down sem material didático adaptado.
Bueno (1999, p. 8), ao diferenciar integração de inclusão, destaca que a primeira abordagem assumia que o problema residia nas características das crianças, enquanto a segunda voltava-se para a incorporação delas na escola regular, que deve considerar que existem diferenças pessoais, culturais, sociais e políticas que exigem modificações estruturais até que a aprendizagem seja adequada às necessidades dos alunos, e não o contrário.
Esse autor levanta uma questão fundamental: “Que ações precisam ser efetivadas para que se garanta a inclusão de qualidade”? Ele afirma que a simples inserção de alunos com deficiência ou com necessidades educativas especiais, sem nenhum apoio ou assistência, pode redundar em fracasso, expresso pelas altas taxas de repetência, evasão e baixos níveis de aprendizagem (BUENO, 1999, p. 13).
O longo caminho a ser percorrido pelas escolas
Na prática, por diferentes razões, estamos longe de nosso ideal de educação. Logo nos primeiros dias na Escola das Pitangueiras, identificamos sérios problemas de estrutura física, como salas de aula com espaço limitado para a circulação de cadeiras de rodas ou com um número elevado de alunos, buracos no pátio da escola, ralos abertos, degraus e rachaduras no chão, dificultando a mobilidade de alunos cadeirantes ou com mobilidade reduzida, além de material pedagógico limitado.
A falta do profissional de Atendimento Educacional Especializado (AEE) foi uma queixa recorrente dos professores, sempre lembrada quando examinávamos as barreiras de estruturas e serviços aos alunos com deficiência.
Após algumas rodas de conversa, respeitando o objetivo geral do curso de favorecer um ambiente de escuta e de troca de experiências com o grupo, começou nossa intervenção, que consistiu basicamente em oferecer conhecimento teórico sobre Educação Especial, apresentar ferramentas e métodos para aprimorar a prática pedagógica e propor dinâmicas de sensibilização.
As dinâmicas procuram despertar empatia, gerar debates, expor angústias e aumentar a autoeficácia docente. Este conceito foi proposto pelo psicólogo canadense e professor da Universidade Stanford, Albert Bandura, e se refere à capacidade humana de fazer um autojulgamento do desempenho funcional. Essa abordagem permite um contato direto com as situações cotidianas e as demandas dos professores e gestores.
Também favorece o aprendizado mútuo entre a equipe pedagógica da Turma do Jiló, com uma educadora especial, pedagogas e psicólogas, e os professores da rede pública de ensino, aos quais declaramos nossa admiração e respeito por estarem na linha de frente, transformarem políticas inclusivas em ação e frequentemente serem a única oportunidade de desenvolvimento e emancipação dos estudantes, em especial os com deficiências.
Uma professora de Educação Física, que chamaremos de A, mostrou-se bastante participativa e fez um depoimento contundente logo no início do curso. “Nas minhas aulas, que precisam de movimento do corpo e entendimento mínimo sobre as regras dos jogos, não faço ideia do que fazer com o aluno Y, que é autista e tem deficiência física. Ele grita todo o tempo e parece incomodado por estar preso à cadeira. Chora e se debate. Quando vejo que ele está na aula, fico tensa, meu coração dispara, chego a suar. Não me vejo em condições de trabalhar com ele, me sinto uma fraude. Sei que ele está completamente abandonado nas minhas aulas”, contou.
Os comentários expressaram suas inquietações e mobilizaram os outros professores, até então pouco participativos. Em outro momento, A relatou que preferiu deixar de lado o conteúdo previsto em uma aula para falar sobre depressão, exposição nas redes sociais e educação sexual, tema latente entre vítimas de bullying na escola, principalmente as meninas.
As falas de A revelam uma professora engajada no trabalho de educar para a vida e uma profissional que, independentemente das limitações, age de forma reflexiva, por isso a humildade em se sentir uma fraude. As palavras fraude e abandono expressavam sua angústia com Y e suas dúvidas sobre como deveria agir.
Esperávamos que as respostas viessem ao longo do ano como resultado do aprofundamento do conhecimento e das práticas da Educação Especial. A Teoria Social Cognitiva (TSC), formulada por Bandura, por se fundamentar na perspectiva de que o ser humano age com intencionalidade e, portanto, exerce certo controle sobre seu destino, pode ajudar a entender a necessidade de despertar empatia e de fortalecer a autoeficácia docente.
Segundo essa abordagem, as pessoas não apenas reagem ao ambiente externo, mas refletem sobre ele e pensam em estratégias que julgam mais apropriadas, por meio de cognições pessoais, entre elas a motivação e a aprendizagem por modelagem.
A autoeficácia, um dos conceitos centrais da TSC, pode ajudar a entender o sentimento de alta ou baixa capacidade de um professor para, por exemplo, adequar currículos e materiais para atender também alunos com deficiência ou para adotar ações preventivas ao bullying (BANDURA, 1997; AZZI; POLYDORO, 2010).
Com um papel central na regulação cognitiva da motivação, a autoeficácia expressa a capacidade humana de julgar o próprio desempenho ao executar atividades específicas e oferece as bases para a motivação humana, o bem-estar e as realizações pessoais; desse modo, liga-se aos processos cognitivos, motivacionais, afetivos e seletivos responsáveis por pensamentos antecipatórios, seleção dos cursos de ação, ativação do organismo e estados emocionais fundamentais da atividade docente.
Na discussão sobre crença, Bandura jamais desconsidera a necessidade de se associar a habilidade para a realização das ações a resultados positivos, assim como não desconsidera a influência do meio sobre os resultados. A autoeficácia pode ser construída a partir de quatro fontes.
A primeira, denominada Experiências Diretas, pressupõe que as experiências anteriores servirão de parâmetro para o autojulgamento de capacidade em relação a alguma atividade. Servirão de parâmetro também para a segunda fonte, Experiências Vicárias, que consiste no que se observa e aprende por meio da troca de experiências com outras pessoas.
A terceira fonte, Persuasão Social, fortalece ou enfraquece o sentimento de autoeficácia por meio da influência verbal de terceiros. A quarta, Estados Fisiológicos e Afetivos, refere-se ao estresse, à ansiedade ou ao medo que resulta tanto de características psicológicas pessoais, como timidez ou fobias, quanto de situações externas que influenciam o autojulgamento sobre a capacidade de realizar alguma atividade (MARTINS, 2012).
A experiência pessoal e a avaliação ou influência dos colegas, portanto, serão determinantes para atingir os objetivos desejados. Quando A sente o coração disparar ao ver Y, os estados afetivos — a quarta fonte da autoeficácia — comprometem a crença sobre sua capacidade de trabalhar com um aluno diferente dos outros.
Os depoimentos dos colegas de A expressam a diferença na autopercepção diante de demandas funcionais: “Não tenho estrutura para pegar os problemas dessas crianças para mim”, comentou a professora V; “Não recebi formação para isso”, desabafou o professor D; “Eles são como plantas, não aprendem, estão lá de enfeite na sala de aula”, comparou a professora L.
Com base no conceito de professor inclusivo — profissional com conhecimento técnico-pedagógico adequado para lidar com necessidades educacionais variadas, sem se deter, a priori, por crenças sobre as limitações de seus alunos —, a equipe pedagógica da Turma do Jiló desenvolve e aplica diferentes estratégias de mobilização, desconstrução de preconceitos e encorajamento dos professores que queiram atingir a autoeficácia para trabalhar de forma inclusiva.
Em uma das atividades práticas dos cursos, os professores experienciam ter cada uma das deficiências físicas ou intelectuais. Enguita (1989), preocupado com as relações sociais da educação, com a domesticação do trabalho e com a atomização do corpo social, critica o modelo atual de escola, a supervalorização do cumprimento de regras e a desvalorização da subjetividade humana.
Esse autor defende a ideia de que a escola prepara as pessoas, acima de tudo, para serem trabalhadores civilizados, que aceitem ordens pacificamente e apenas desempenhem a função que lhes couber no mercado de trabalho. Segundo ele, a escola também serve para domesticar quem passa por ela ao consumo desenfreado, sustentando, assim, a lógica do capital.
Ele trata de situações de violência simbólica em geral não percebidas e compara a escola com a linha de montagem fabril, que transforma uma peça original em algo muito diferente, de modo que sua essência não pode mais ser vista.
Com essa analogia, Enguita ajuda a pensar por que pode ser tão difícil abarcar a diversidade em um sistema educacional excludente, já que seu objetivo é impor a todos os mesmos conteúdos, a mesma linha cronológica de aprendizado e a disposição para cumprir as mesmas regras, ordens e rotinas.
No final de um dos cursos, A chegou sorrindo, pediu para todos verem no celular uma de suas aulas e comentou: “hoje eu não senti meu coração acelerar quando soube que o aluno Y viria para a quadra para a aula de Educação Física. Depois de observar muito esse aluno e de pensar nos recursos materiais que tenho, planejei uma aula de que ele pôde participar”.
Com o aluno tem mais mobilidade nos membros superiores, a professora preparou um circuito com cones deitados e instruções simples e objetivas. Explicou-lhe que deveria mirar a bola no buraco dos cones e fazer o circuito com sua cadeira. Os demais alunos, curiosos com a montagem da atividade, se aproximaram.
“Aprendi no curso da Turma do Jiló que atividade diferenciada não é como uma atividade adaptada”, comentou A, que incluiu todos os outros alunos na atividade, permitindo que Y interagisse com os colegas pela primeira vez.
A professora coordenadora teve a ideia de que todos os professores deveriam compartilhar as atividades e avaliações que haviam feito ao longo do ano com os alunos em processo de inclusão. O resultado foi riquíssimo.
Mesmo os que pareciam mais resistentes e pouco falavam sobre suas práticas fizeram atividades inclusivas, como a elaboração de boards de tecnologias assistivas, reativação do grêmio estudantil para discutir temas como o bullying com os alunos e atribuição de funções para os estudantes em processo de inclusão em um festival cultural da escola.
As transformações sempre aparecem no fim do programa de educação inclusiva. Os professores ampliam seus conhecimentos e passam a atuar de maneira mais flexível, tanto em termos de postura quanto do currículo pedagógico. Eles assumem com mais confiança seus lugares de mediadores, tiram o foco de atenção na deficiência e ampliam as habilidades dos alunos.
Um ambiente inclusivo faz todos os alunos, com ou sem deficiência, se sentirem pertencentes ao ambiente escolar, vistos e acolhidos, sem julgamentos ou assistencialismo, o que os faz progredir de acordo com suas condições, revendo padrões de comportamento fechados e impositivos.
Em um mundo com aproximadamente 7 bilhões de habitantes únicos e singulares, deveria parecer estranho a humanidade ainda estar aprendendo a conviver e, principalmente, a pensar em alinhar equidade com diversidade.
Quem convive com pessoas com deficiência sabe o quanto elas podem ensinar, o quanto é importante esse convívio para o desenvolvimento de pessoas empáticas e o quanto as pessoas com deficiência precisam de igualdade de oportunidades, em todos os âmbitos, para que, dentro de suas condições, se desenvolvam ao máximo.
Caminhamos bastante, já que em um passado não tão remoto as pessoas com deficiência eram banidas do convívio social, mas, para avançar, precisamos entender os fatores que causam a marginalização de segmentos da população.
Em uma pesquisa sobre o preconceito e a discriminação no ambiente escolar com 18,5 mil entrevistados (alunos, pais e mães, diretores, professores e funcionários) em 501 escolas de todo o país, a discriminação em relação à deficiência foi a terceira maior (32,4%), após a discriminação de gênero (38,2%) e a discriminação geracional (37,9%) (MAZZON, 2009).
REFERÊNCIAS
AZZI, R. G.; POLYDORO, S. A. O papel da autoeficácia e autorregulação no processo motivacional. In: BORUCHOVITCH, E. et al. (Orgs.). Motivação para aprender: aplicações no contexto educativo. Petrópolis: Vozes; 2010.
BANDURA, A. Self-efficacy: the exercise of control. New York, NY:
Freeman; 1997.
BUENO, J. G. S. Crianças com necessidades educativas especiais, política educacional e formação de professores: generalistas ou especialistas? Revista Brasileira de Educação Especial, v. 3, n. 5, p. 7-26, 1999.
BUENO, J. G. S. Educação especial brasileira: questões conceituais e de atualidade. São Paulo: EDUC; 2011.
ENGUITA, M. F. A face oculta da escola. Porto Alegre: Artes Médicas; 1989.
GUERREIRO-CASANOVA, D. Integração e autoeficácia na formação superior na percepção de ingressantes: mudanças e relações. 2007.
201f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.
MARTINS, P. C. O professor coordenador e a percepção que tem da sua função no contexto do programa “São Paulo faz escola”. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Nove de Julho, São Paulo, 2012.
MAZZON, J. A. (Coord.). Projeto de estudo sobre ações discriminatórias no âmbito escolar, organizadas de acordo com áreas temáticas, a saber, étnico-racial, gênero, geracional, territorial, necessidades especiais, socioeconômica e orientação sexual – Relatório analítico final. São Paulo: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas; 2009. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relatoriofinal. pdf>. Acesso em: 8 mar. 2020
Carolina Videira é coordenadora da pós-graduação “Práticas Inclusivas e Gestão das Diferenças”, no Instituto Singularidades. em CEO e Fundadora da Turma do Jiló, OSC de Educação Inclusiva. É graduada em Fisioterapia, pós-graduada em Neurologia (UMESP) e mestre em Neurociências (UNIFESP).
Pâmela Carolina Martins Tezzele é educadora especial pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora da Pós-graduação no Instituto Singularidades e membro da equipe pedagógica da Turma do Jiló.
Este texto foi originalmente publicado na Revista DI no 17, em 2020.
Queremos te ouvir: o que a sua escola está planejando na área da inclusão neste ano?
Para saber mais: https://institutosingularidades.edu.br/novoportal/produto/inclusao-praticas-inclusivas-e-gestao-das-diferencas-2/
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