A partir do momento em que a criança vai para escola, um sem fim de possibilidades se abre diante de seus olhos. Ela irá explorar diferentes espaços, como o jardim da escola e as salas de aula, descobrir os insetos que vivem por ali, os pássaros que sobrevoam o lugar, e entrará em contato com o outro. Para o professor Guilherme Jacobik, que leciona na graduação em Pedagogia do Singularidades, tudo isso passa pela educação científica.
Conversamos com o professor sobre como esse primeiro contato é importante, como ele é fundamental na formação do futuro cidadão e como os professores do Ensino Fundamental podem estimular que esses saberes adquiridos na infância se prolonguem, mantendo o interesse de seus estudantes. Confira a entrevista a seguir.
Paulo Freire definia a alfabetização como um processo de conexão entre o mundo no qual a pessoa vive e o aprender a escrever. No caso da alfabetização científica, esse paralelo também pode ser traçado?
No caso de alfabetização científica, se a gente parar para pensar no que o Freire anuncia ainda sem saber, visionário como era ele, a ideia do letramento é essa mesmo, a aproximação do sujeito com um conhecimento de um nível organizado com um conhecimento mais geral.
Esse conhecimento que as pessoas chamam de senso comum, na verdade, hoje sabemos que são saberes. Então, a operação científica pode ser traçada com um paralelo em relação às ideias freireanas, porque todos nós somos produtores de conhecimentos científicos.
O que a gente chama de “Ciência”, na verdade, poderia ser chamado de “Ciências”, no sentido de que, partindo de diferentes pontos de vista, você tem princípios relativos à ciência que se diferenciam pela história de vida das pessoas, pela experiência de cada um.
Um exemplo que eu poderia dar é o conceito de natureza. Quando você fala deste conceito do ponto de vista de uma comunidade indígena, por exemplo, de uma das centenas de comunidades indígenas, a maioria das pessoas que ali vivem diria que a natureza não é algo apartado da gente.
Portanto, no meio da sociedade mais urbana e ocidentalizada, se fala deste tema como um elemento externo: nós “vamos à natureza”. Então, a gente quer a aproximação destes dois mundos por meio da ciência.
Na verdade, o mundo da ciência estabelecida como padrão, normatizado pela escola e pela ciência considerada “a da razão” tem o seu valor, e isso não é um mérito, mas há também um rigor, uma metodologia em outras formas de ciências que nem sempre a escola valida e se preocupa, mas que também é a ciência.
Podemos chamar a aprendizagem de ciências de letramento científico? Em que idade e momento da educação é indicado que ele tenha início?
Acho que essa palavra “alfabetização” é muito reduzida de sentidos. Letramento é uma palavra que amplia. Então, dizer que ensinar ciência ou alguém a fazer ciência é mais interessante do que a gente imaginar que todos nós sofremos um processo de letramento científico ao longo da nossa vida inteira.
O tempo todo, nós nos deparamos com a necessidade de vermos com mais profundidade as coisas que estão à nossa volta. Essa maior profundidade, que é o que a ciência faz, é a busca por razões provisórias, por verdades provisórias, pela comparação, pela elaboração, pela busca de dados, pela seleção, pela organização e pela a troca com os pares. O saber científico é um saber da produção do coletivo.
Isso é muito bonito, porque a gente às vezes imagina que a ciência é um fazer de um cientista isolado, e nunca o é. Ela sempre tem uma relação com autores, com pessoas que validem os nossos processos, com grupos de pesquisa com encontro entre iguais e com a contraposição dos diferentes. Então, é um letramento que vai se dando a vida inteira.
A criança muito pequenininha, desde seus primeiros passos já está tendo contato com as coisas à sua volta, e vai adquirindo esse saber científico experimentando, provando, teorizando, criando suas conjecturas, e isso é o saber científico que traz.
Então, em qual idade seria o momento indicado? Eu diria que desde o início, desde que a criança adentra a educação infantil, não importa em qual idade. Ela já vai tendo aproximações sucessivas com aquilo que a gente chama de letramento científico.
Ou seja, um mesmo objeto de conhecimento visto lá na educação infantil aos 2 ou 3 anos de idade, ser tratado de formas diferentes durante muitas etapas da vida. Todas essas aproximações com esse mesmo conteúdo vai fazendo com que o sujeito se torne mais conhecedor desse conteúdo e se aproprie dele, inclusive produzindo conhecimento e não apenas se apropriando.
Como o professor da educação infantil pode trabalhar esses conteúdos nos anos iniciais? E nos finais?
Como outras áreas do conhecimento, pensando aqui nos “conteúdos das ciências”, “as ciências naturais”, mas a ciências naturais também ampliadas, no sentido de que a educadora argentina Ana Espinoza diz, que o ensino de ciências não deveria ser só ciências naturais e biológicas. A criança não aprende só isso, ela aprende ciência química, ciência física e na observação das coisas.
Por exemplo, quando um aluno observa a transformação dos estados da água, ele está vendo um fenômeno químico e outro físico, de mudanças, além de um fenômeno natural que ele pode observar na água da chuva e tudo mais.
Então, a gente pode dizer que esses conteúdos das ciências, sejam elas a ciências da natureza (biológicas, da química e da física), todas elas juntas podem ser ensinadas desde muito cedo na educação infantil, e uma das melhores maneiras de trabalhar nos anos iniciais com esses conteúdos e também na educação infantil é sempre por meio da experimentação, do contato direto com as coisas, pelas visitas, pelos passeios, pelos estudos do meio, pelo contato com o plantio (por exemplo, de uma horta), com o fazer uma experiência ou, por exemplo, uma atividade de culinária e chamar a atenção para aspectos específicos das transformações.
Isso é sempre muito lúdico, e não vale só para o ensino fundamental inicial e nem para a educação infantil: o lúdico é válido para o ensino fundamental como um todo, inclusive até o 5o ano. Quando eu falo disto, me refiro desde ao jogo propriamente dito, mas também às atividades que dão prazer.
As leituras divertidas, com tantos blogs, com tantas artigos científicos engraçados, inteligentes e profundos ao mesmo tempo, sites interessantes, nas revistas e livros didáticos interessantes. A gente não tem por que trabalhar uma ciência empolada. Como diz B. Tyler White, um educador americano, a gente precisa se divertir ensinando ciências e se divertir aprendendo ciências, porque ela é algo divertido e as crianças gostam muito.
Então, essa ludicidade pode-se dar pela brincadeira ou por um livro divertido de se ler (que não seja diretamente ligado a ciências). A gente pode pegar, de repente, uma história, como a de um livro da Companhia das Letras cujo nome é Como a toupeira descobriu quem tinha feito cocô em sua cabeça, que é divertidíssimo e fala sobre escatologia, as crianças gostam de cocô, essas coisas.
Você pode falar de uma coisa profunda, como as características dos animais, do que se alimentam, como defecam, se tem ou não cheiro, se é possível identificar características do animal por suas fezes etc.
A gente pode tirar ciência das coisas inusitadas. A cozinha é um grande laboratório. A culinária é das ciências, desde que a gente olhe para esse espaço desta forma. Não é que ciência está em algum lugar: ela está em todos os lugares, mas eles precisam ser observados.
O professor de educação infantil poderia trabalhar pela brincadeira, assim como também o professor de ensino fundamental das séries iniciais e finais. Pelo jogo, pela conversa, pela leitura de livros interessantes, por meio de vídeos interessantes, acessando blogs e sites, conversando sobre o que as crianças sabem, fazendo horta, fazendo seleção de materiais e recursos da escola, chamando a atenção para os jardins da escola, para o que está à volta dela no bairro, os animais que circulam, ou os pássaros que visitam a escola e a casa da criança. São infinitas as possibilidades.
Quando falamos de letramento científico, incluímos também as ciências humanas?
Essa é uma pergunta interessantíssima. Aí eu vou fazer uma provocação: qual ciência não é humana? Matemática não é uma ciência humana? O que há de Matemática no mundo foi inventado por quem? A Matemática por si só, ela está aí na natureza e dada, ou ela é uma observação humana para as coisas, para os aspectos que estão à nossa volta?
Isso significa que toda ciência que o homem desenvolve é humana: Geografia e História são ciências humanas. A Matemática é considerada uma ciência exata só por uma questão de organização curricular porque, na prática, é uma ciência da história e da construção dos teoremas.
Não existe o número na natureza, a gente quantifica as coisas. Quando falamos de ciências humanas, provavelmente estamos tratando de ciências sociais, no que seria História e Geografia no ensino fundamental, seriam os Estudos Sociais. Todas elas são, sim, ciências naturais, porque são o estudo da vida, e o humano é vida. E quando a gente fala também da natureza não inclui o homem?
Como estudar ciências colabora na formação do estudante como cidadão?
Você começou a primeira pergunta falando de Freire, e eu acho que nessa gente volta a ela. É inevitável imaginarmos que o letramento ou o conhecimento científico levam a uma formação da cidadania esclarecida e de superação das desigualdades, da opressão.
Paulo Freire diria que ao ensino da leitura e da escrita é precedido pela palavra. Então, a palavra falada, que traz o pensamento para a escrita e para a leitura, vale para o letramento científico.
O conhecimento de vida das pessoas, o conhecimento prévio, mesmo de uma criança muito pequena deve ser muito validado pela escola, ao mesmo tempo que o conhecimento escolar sistematicamente organizado vai ajudar a ampliar o pensamento desta mesma pessoa, deste mesmo sujeito, que vai não superar, ou suplantar ou substituir, mas vai somar, vai ressignificar as suas experiências.
Desta forma, o letramento científico com certeza faz da formação de uma cidadania uma cidadania melhor, porque se todos nós como pessoas de uma sociedade olharmos para a nossa volta com um olhar de interesse científico e investigação, não deixamos passar as coisas, a gente vai se preocupar com que elas aconteçam corretamente e vai olhar de todos os lados.
Eu fico imaginando, por exemplo, no mundo de fake news, em que a gente precisa fazer campanha esclarecendo às pessoas que uma é uma informação falsa em relação a uma verdadeira, da importância de circular bons conhecimentos ao invés de propagar conhecimentos duvidosos ou informações que não têm qualidade.
A gente poderia imaginar que, numa formação de letramento para a cidadania, podemos preparar o cidadão para ele próprio ter interesse e um olhar mais apurado e autônomo para as coisas que estão à sua volta.
E para criar a cidadania no sentido de informar os demais à sua volta, sejam eles os escolares, que estão com ele naquele momento, ou pessoas da família ou do círculo próximo no bairro, na comunidade ou condomínio onde ele mora, essa formação de cidadania geral acaba sendo ampliado e melhorada por meio de uma investigação científica, pelo olhar profundo das pessoas para as coisas da sua vida. Aquilo que interessa a ela, interessa o bem comum.
Que atividades os docentes podem propor aos alunos do Ensino Fundamental para aumentar o interesse deles pelas ciências?
Eu acho essa pergunta de ouro, porque eu acho que o Ensino Fundamental, conforme vai avançando a idade (pensando também no Fundamental 2) no avançar da escolaridade das crianças, parece que os professores vão esquecendo o quanto o diálogo é extremamente importante.
Então você vê, na educação infantil as rodas de conversas são muito valorizadas, o tempo de valorização da fala do outro, do aprender a escutar o outro é tão importante, e isso vai se perdendo ao longo do tempo. No Fundamental, você não vê rodas, debates, e quando eu falo isso, obviamente, para ciência o debate é sua razão de existir.
E parece que ensino fundamental precisa reatar esse sentido de dialogar. Por exemplo, podemos pensar que isso só vale para ciências da natureza e para as ciências humanas, mas não.
Vale para a Matemática, por exemplo, quando uma criança elabora o pensamento dela e explicita esse pensamento e o debate com o outro, além dela reorganizar o pensamento e torna-lo mais interessante, mais objetivo e comunicativo corretamente, ela também vai permitir ao outro aprender com ela, e vice-versa.
Assim, acho que o principal instrumento no que o professor deve apostar são situações que promovam o diálogo. Nós temos várias, desde o debate até mesmo uma situação de provocação da forma metodológica de trabalho, do individual para o coletivo.
Dou como exemplo os projetos, boas sequências didáticas, situações de interação de jogo, estudos do meio, a ideia de um laboratório não apartado da sala de aula, mas integrado a ela, os experimentos como provocadores de olhares, e as conjecturas da criança ou do adolescente.
Tem muita possibilidade de você pedir validação do pensamento da criança, permitir a ela tempo de hipótese, antes de apresentar um conceito pronto, o que ela pensa sobre aquilo. Mas acho que o principal instrumento que o professor pode ensinar à criança é o livre pensar e pesquisar, ensinar a fazer pesquisa ensinar a dúvida, ensinar a duvidar, ensinar a validar, a ver o outro como fonte de conhecimento.
Como diz o escritor e poeta Manuel de Barros, mais do que os livros, mais do que os conhecimentos organizados, ver o outro como fonte. Esse é um pensamento muito bonito, o saber vem das fontes, e o outro é sempre uma fonte importante.
Esses são os instrumentos de trabalho na formação da Ciência na escola: ensinar a criança a busca pela autonomia, o que não significa de forma nenhuma o individualismo; mas uma autonomia de pensar; de livre associar-se; de ir atrás de informações para responder às dúvidas e às vontades de pesquisa que venha a se ter.
Que não tenha dependência de que o outro valide o pensamento apenas, mas que ela pode buscar essa validação no outro, ela autonomamente buscar que o outro também a referencie ou refute o seu pensamento; pensar no contraditório; saber que o conhecimento que se tem não é estável, estático e imutável e todo conhecimento pode-se modificar. Isso é muito bom para todos.
Guilherme Santinho Jacobik é doutor em História, Filosofia e Ensino de Matemática e professor da licenciatura em Pedagogia do Instituto Singularidades.
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