O titulo do presente e breve artigo é um excerto do “Manifesto por um Brasil Literário”, da autoria de Bartolomeu Campos de Queirós — manifesto que deu início ao Movimento por um Brasil Literário, um movimento de fomento à leitura e acesso aos livros.
No Manifesto, Queirós (2009) defende que a necessidade do conhecimento da mecânica da língua, ou seja, do processo de codificação e de decodificação que geralmente ocorre no ambiente escolar (“alfabetização como bem e direito”) não deve ocorrer de forma desvinculada do que o autor chamou de “construção literária”. Isso porque, de acordo com Queirós, “é inerente aos homens e mulheres a necessidade de manifestar e dar corpo às suas capacidades inventivas”.
E é a literatura, enquanto espaço para compreensões, construções, indagações, reformulações, que cria condições para o conhecimento de mundos outros (da ficção, da realidade); que oportuniza (des) conhecimentos; que viabiliza (in)compreensões; que dá amplidão aos olhares, aos fazeres, aos saberes.
De acordo com o autor, a literatura “democratiza o poder de criar, imaginar, recriar, romper o limite do provável” e “acolhe a todos e concorre para o exercício de um pensamento crítico, ágil e inventivo”.
Queirós defende que outorgando a si mesmo o privilégio de idealizar outro cotidiano em liberdade, e movido pela intimidade maior de sua fantasia, um conhecimento mais amplo e diverso do mundo ganha corpo, e se instala no desejo dos homens e mulheres promovendo os indivíduos a sujeitos e responsáveis pela sua própria humanidade.
De consumidores passa-se a investidores na artesania do mundo. Por ser assim, persegue-se uma sociedade em que a qualidade da existência humana é buscada como um bem inalienável. (Queirós, 2009)
Para que se possa investir na artesania do mundo, faz-se necessário, primeiramente, conceber a literatura como arte.
Em definição dicionarizada, temos literatura como uso estético da linguagem escrita (Houaiss, 2015). E, como arte, a produção consciente de obras, formas ou objetos voltada para expressão da subjetividade humana, os nossos sentimentos e opiniões, assim como para retratar as nossas experiências, transmitir informações e semear beleza, divertimento e reflexão (Houaiss, 2015).
Ao congregar as duas definições, chegamos à literatura como manifestação artística, que contempla subjetividades; construções e reconstruções; múltiplas compreensões; questionamentos; espantos e encantos; analogias e contraposições.
No entanto, uma análise dos livros didáticos e dos chamados livros paradidáticos (livros literários com uma intencionalidade pedagógica específica, pré-determinada) presentes em muitas escolas, bem como dos materiais produzidos a partir de textos diversos — como as fichas de leitura, as provas sobre o livro, entre outros — torna evidente a pedagogização da literatura (Lois, 2010, p. 9) em detrimento à pedagogia da literatura (Reyes, 2012, p. 26).
Pedagogização da literatura versus Pedagogia da literatura
Por pedagogização da literatura (Lois, 2010) temos o processo de transformar a produção artística em objeto utilitário. Os livros e os textos perdem a função de provocar perguntas. Fecham-se em si mesmos, sendo propriedade do autor.
Denegam ao leitor a possibilidade de preencher lacunas da obra com conhecimentos, saberes, anseios e receios próprios; de reconstruir os sentidos de forma subjetiva. Nessa perspectiva, são utilizados como pretextos para a localização de respostas, sejam elas sobre o conteúdo temático ou sobre aspectos ortográficos, gramaticais, notacionais. Transige-se assim, e unicamente, a perspectiva da objetividade.
Sobre essa objetividade, Reyes questiona:
de onde surgiu (…) esse consenso escolar que obriga todos a sublinharem a mesma coisa em um mesmo parágrafo de um conto, a entenderem rapidamente as mesmas ideias principais e a enxergarem todas as obras a partir de um mesmo ponto de vista? (Reyes, 2012, p. 19)
A autora pauta seus estudos e pesquisas sobre a literatura concebendo a mesma como manifestação artística; e como tal, carregada de subjetividade — tanto de quem cria quanto de quem a aprecia. E, diante da objetividade proposta por uma pedagogização da literatura, amplia a reflexão (própria e de nós, leitores), indagando: “de onde surgiu esse desprezo que a educação nutre pelo subjetivo, pelo inefável, pelo que não pode ser definido nas linhas de um dicionário?” (Reyes, 2012, p. 21)
Em contraposição à pedagogização da leitura, Reyes (2012) propõe “uma pedagogia da literatura que desse vazão à imaginação dos alunos e ao livre exercício de sua sensibilidade, para impulsioná-los a ser recriadores dos textos”.
Na perspectiva da pedagogia da literatura o texto, mais do que um conglomerado de informações, é um artefato cultural. Por ser a literatura a arte da palavra (Britto, 2015) todo texto deve (ou deveria) interpelar seus leitores-apreciadores, como propõe o autor:
A arte — a literatura é a arte da palavra — nasce do e no pleno espanto de viver; interpela continuamente a condição humana — suas emoções e desejos; e faz assim, não somente em sua forma imediata, mas em todas as formas possíveis. A arte, em uma certa medida muito significativa, se opõe ao fazer científico, que se pauta pela tentativa de controlar a subjetividade: a arte alimenta-se dessa subjetividade e só se realiza em função dela. (BRITTO, 2015, p. 56)
Corroborando com as teses de Reyes (2012) e de Britto (2015), Colomer (2007) aponta para a necessidade de se “criar um itinerário de leitura, que permita às novas gerações transitar pelas possibilidades de compreensão do mundo e desfrutar da vida que a literatura lhes abre”. De acordo com a autora, é preciso promover uma educação literária:
o objetivo da educação literária é, em primeiro lugar, o de contribuir para a formação da pessoa, uma formação que aparece ligada indissoluvelmente à construção da sociabilidade e realizada através da confrontação com textos que explicitam a forma em que as gerações anteriores e as contemporâneas abordaram a avaliação da atividade humana através da linguagem (COLOMER, 2007, p. 31).
A formação da pessoa, almejada por Colomer, é também a nossa busca. Temos por objetivo que as crianças e jovens se constituam leitores e apreciadores da arte literária (entre outras); que possam ampliar os olhares e os conhecimentos — desenvolvendo o pensamento crítico; que possam, ainda, compreender a relação entre literatura e direitos humanos e a indispensabilidade da literatura — enquanto manifestação artística, artefato cultural — como um bem incompressível, ou seja, como bem fundamental para a sobrevivência do ser humano.
É sobre isso que trataremos no curso de extensão “O direito à literatura” — literatura esta que, segundo Antonio Candido (1998, 2017 em 6ª edição), “é o sonho acordado das civilizações”.
Referências
ANDRUETTO, M.T. Por uma literatura sem adjetivo. São Paulo: Pulo do Gato, 2012.
BRITTO, L. P. L. Ao revés do avesso: leitura e formação. São Paulo: Pulo do Gato, 2015.
CANDIDO, A. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 107, 6ª edição, 2017.
COLOMER, T. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007.
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2011.
LOIS, L. Teoria e prática da formação do leitor: leitura e literatura na sala de aula. Porto Alegre: Artmed, 2010.
QUEIRÓS, B. C. Movimento por um Brasil Literário (2009). Disponível em: < https://sinapse.gife.org.br/download/manifesto-brasil-literario>
REYES, Y. Ler e brincar, tecer e cantar: literatura, escrita e educação. São Paulo: Pulo do Gato, 2012.
Vivian Maria Marcondes é Doutoranda e Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP); pós-graduada em Fundamentos do Ensino da Matemática (Mathema); pós-graduada em Psicopedagogia (Universidade Metodista); graduada em Pedagogia. Atuante há mais de 20 anos como professora, em escolas da rede particular e pública de São Paulo. Formadora de professores em cursos de extensão universitária.
Para saber mais: https://institutosingularidades.edu.br/novoportal/produto/graduacao-em-letras/
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