A maioria de nós temos como memória de nosso processo de alfabetização as letras, as sílabas, o bê-a-bá, as cartilhas… Em parte, isso ocorre, porque, apesar de se saber, pelo menos desde os anos 1980, que a alfabetização é um processo de (re) construção pela criança de um sistema de representação, prevalecem as práticas alfabetizadoras balizadas pela noção de escrita como código, em que as letras decalcariam os sons da fala de forma biunívoca e transparente.
Mas, em parte, isso ocorre também porque a maioria de nós não viveu um processo de alfabetização atravessado pelas práticas de leitura literária, cujos livros e sua dimensão de encantamento poderiam ter deixado em todos nós memórias outras, lembranças de modos de ser e de existir semelhantes e distintos dos nossos.
A despeito da enorme importância de (não) termos memórias literárias de nosso processo de alfabetização, as práticas de leitura literária desempenham outras funções no percurso que se estende entre o estado de não saber ler e escrever e aquela condição que, tradicionalmente, nomeamos como ser alfabetizado.
Refiro-me aqui à potência da literatura para a inserção das crianças no universo letrado, para o desenvolvimento da percepção de que a escrita pereniza a linguagem oral (a história é sempre igual, não importam as vezes em que é lida) e para constituição dos modos de dizer próprios à escrita.
Muito se denuncia sobre o enorme gap que separa os estudantes das redes públicas e privada de ensino, quando o que está em jogo é processo de alfabetização. Em decorrência, muito se discorre sobre a melhor metodologia para alfabetizar e, recentemente, a discussão sobre a eficácia dos métodos de base fônica foi reacendida pela Política Nacional de Alfabetização (PNA). No entanto, a meu ver, o cerne da questão é outro; está em outro lugar.
Vou defender aqui que o apartheid entre estudantes brasileiros, evidenciado (como a imprensa se regozija em anunciar) pelos sistemas nacionais e internacionais de avaliação, nada tem a ver com o como se alfabetiza. Por mais paradoxal que possa parecer, compreender que usamos sinais gráficos (os grafemas) para representar os fonemas da língua, de acordo com a lógica de um sistema de base alfabética, é relativamente simples e certamente muito mais simples do que creem aqueles que defendem que o problema de nosso país está nos níveis de alfabetização.
O que segrega nossos estudantes é a impossibilidade de a maior parte deles compreender por que se lê e se escreve e, sobretudo, de poder participar de práticas em que se lê e se escreve.
Boa parte de nossos estudantes desconhece as práticas de leitura e escrita e o que elas nos consignam: ampliação de nosso universo de referências, experiências estéticas, diversificação dos conhecimentos, embasamento para nossas opiniões, alargamento de nossas experiências etc.
Boa parte de nossos estudantes não tem acesso a práticas de leitura e escrita diversificadas, especialmente aquelas ligadas às esferas sociais mais complexas, como a jornalística, a publicitária, a científica, a literária.
Ou seja, boa parte de nossos estudantes não tem tido a oportunidade de exercer plenamente sua cidadania, porque vem sendo sistematicamente apartada dos espaços sociais de produção e de disseminação do conhecimento, viabilizados pela linguagem escrita.
Comparem uma criança que vive em um ambiente familiar em que não há livros, revistas, jornais, TV paga, cinema, teatro, exposições, viagens e outra que vive em um ambiente vazado por todas essas experiências. Qual delas saberá o que é e para que serve a escrita, quando chegar à escola?
O que ocorre em nossa realidade é que a escola tem figurado como a única agência responsável pelo processo de letramento da esmagadora maioria das crianças, porque elas não têm, fora da escola, a oportunidade de vivenciar experiências com a cultura letrada, tanto porque seus pares de convivência mais imediata não são, eles próprios, sujeitos letrados, quanto porque as comunidades em que vivem padecem da ausência de equipamentos de cultura, como cinemas, teatros, museus, bibliotecas etc.
A tarefa das escolas que recebem essas crianças vê-se, assim, multiplicada, relativamente àquelas que têm, entre seus estudantes, as crianças que vivenciam as práticas sociais de leitura e de escrita desde que nascem.
Diante desse cenário, amplifica-se a necessidade de a escola promover práticas diversificadas de letramento, nas quais a leitura e a escrita tenham uso, função e significado. Em particular, amplia-se a necessidade da promoção de práticas de leitura literária e, como estamos tratando especialmente do processo de alfabetização, de leitura de literatura infantil. E por quê?
Em primeiro lugar, a literatura infantil – desde que de boa qualidade, o que inclui supor uma criança capaz e produtora de cultura e não um sujeito moral e eticamente modelável – tem a potência de constituir, diversificar e alargar o horizonte de referências das crianças, permitindo que elas conheçam outros modos de ser, existir, pensar e sentir o mundo. A literatura infantil de qualidade contribui, assim, para a formação ética e estética do sujeito.
Em segundo lugar, a literatura infantil desperta nas crianças o desejo de ler muitas vezes a mesma história. Em particular na Educação Infantil, há uma necessidade de se reencontrar com as mesmas personagens e o mesmo enredo, como se para confirmar que tudo vai acontecer exatamente da mesma forma.
Esses reencontros, além de aplacar o desejo de ouvir novamente, vão constituindo a percepção de que a escrita é perene e se o que está escrito se lê sempre da mesma forma, o que se fala também pode ser perenizado pela escrita. É assim que, paulatinamente, as leituras literárias vão contribuindo para que as crianças compreendam que a escrita representa a fala.
Por fim, a literatura infantil de qualidade oferece às crianças o encontro com os modos de dizer próprios à escrita. A fala letrada, essa fala atravessada e tramada na escrita, chega às crianças por meio da leitura: ouvindo contos, fábulas, lendas, mitos, poemas e as narrativas da literatura infantil, as crianças vão, aos poucos, constituindo sua própria fala letrada, incorporando à sua linguagem oral, recém constituída, aqueles modos de dizer próprios aos discursos e gêneros da tradição escrita.
Quando então decifrarem os mistérios do funcionamento do sistema de escrita e compreenderem como usar letras para representar sons, as crianças que acessaram e participaram de práticas de leitura literária não dominarão apenas a tecnologia da escrita, mas saberão, sobretudo, que a escrita não é um espelho do que se fala, mas sim um outro modo de enxergar, refletir e dizer o mundo à sua volta e de nele atuar.
Cristiane Mori é mestre em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e fonoaudióloga pela PUC-SP. É professora da licenciatura em Pedagogia do Instituto Singularidades.
Professor do ensino infantil: conte para a gente como você usa a literatura nas suas aulas!
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