O desenho é uma atividade que está muito presente na infância, como forma de expressão da criança e sinalizadora do seu desenvolvimento e aprendizagem. Embora faça parte do currículo da Educação Infantil e tenha sido objeto de muitos estudos por parte de diversos teóricos nas mais diversas perspectivas do conhecimento, ele ainda é pouco compreendido e valorizado pela comunidade escolar, que muitas vezes o veem como um mero passatempo da criança, assim como o brincar, que também é desvalorizado quanto a sua importância para o desenvolvimento da criança.
O presente artigo é resultado de um estudo feito como conclusão do curso de pós-graduação em Neurociência na Escola, e tem por objetivo trazer à discussão estudos sobre o papel do desenho para o desenvolvimento cognitivo, tendo como foco a construção da escrita e o processo da alfabetização sob a perspectiva da Neurociência.
Ele é baseado nas pesquisas de Cohn (2012) e Sheridan (2002, 2005, 2009), e estudos que buscam evidências de compartilhamento de áreas cerebrais comuns entre o desenho e a escrita, além dos estudos trazidos por Dehaene (2012) sobre o processo de construção da escrita, do ponto de vista biológico.
Para iniciar a conversa, vamos entender a definição de desenho de acordo com Cohn e Sheridan, e qual seria o ponto de conexão com o sistema de escrita apresentado por Dehaene.
Segundo Cohn (2012), o desenho é um sistema de representação muito similar ao da linguagem, e que necessita da aquisição de esquemas para se desenvolver. Ele não é resultado somente da percepção daquilo que se vê, mas dos esquemas gráficos adquiridos e armazenados na memória e que, assim como a linguagem, são convencionalizados pela cultura e assimilados pelos indivíduos a partir da interação deste com o seu meio.
A criança nasce com um sistema básico pronto para o desenho, assim como ela nasce para a fala, ao qual Cohn (2012) chama de propriedades resilientes. E o que isso significa? Que a criança vai desenhar independente de ser estimulada ou não.
Podemos afirmar aqui que essas formas básicas seriam não mais do que as garatujas, princípios do ato de desenhar, similar aos balbucios que a criança pequena faz, o princípio da fala. Porém, para que a criança avance no seu sistema de desenho, é preciso que ela desenvolva esquemas gráficos, que vão sendo adquiridos a partir dos estímulos ambientais e da prática, armazenados na memória e requisitados durante o ato de desenhar.
Esses esquemas requerem a aquisição de um vocabulário visual básico, de linhas e formas, a que Cohn (2012) denomina léxico gráfico, bem como da aquisição de regras “sintáticas” para a combinação dessas linhas e formas, formando as imagens e denominadas de “sintaxe gráfica”.
Por fim, um terceiro elemento é envolvido durante o desenho: o “script de produção”. Será ele que vai conectar e articular o sistema de desenho ao sistema motor e ao visual na produção, organizando a ordem de espaço e tempo em que os desenhos serão realizados[1].
O desenho é uma habilidade que tem um período sensível para se desenvolver, encerrando-se na adolescência. Isso é um indício de que ele tem um papel muito importante na formação cognitiva da criança.
Vale aqui ressaltar que esse período sensível não significa que após a adolescência não seja mais possível aprender a desenhar, mas sim, que se trata de uma fase propícia para esse tipo de aprendizado.
Sheridan (2002, 2005, 2009), em sua “Hipótese do Rabisco”, e também em estudos em torno da “Teoria das Marcas”, nos traz hipóteses muito importantes acerca do rabisco, que é a gênese não só do desenho, como de outras literacias, dentre elas, a alfabetização. De acordo com suas teorias, rabiscar é uma necessidade do cérebro, e ele está geneticamente predestinado a isso.
Esse pensamento vai ao encontro do que afirma Cohn (2012) sobre as propriedades resilientes do desenho. Isso quer dizer que toda a criança, independente da época, etnia, cultura, fez ou fará marcas. Isso aconteceu no passado, com os nossos ancestrais, a partir do momento em que tiveram as suas mãos libertas, possibilitado pela posição ereta e se tornaram capazes de manusear ferramentas.
Ao rabiscar, as crianças estariam modelando os sistemas neurais, praticando a auto-sincronização e auto-integração dos gestos, estimulando e treinando as células especializadas do córtex visual para linhas e formas, e também para discriminar os limites da imagem (figura e fundo).
Estariam, portanto, de acordo com Cohn (2012), construindo os esquemas gráficos do desenho. A exploração dessas linhas e formas (ponto, linhas, círculos, espirais…), estruturas geneticamente determinadas e “pré-existentes”, a princípio desordenadas, mas que vão se organizando e se estruturando, ajudam a organizar o pensamento de forma mais coerente.
A partir do momento em que a criança olha para os seus rabiscos e dá um significado para eles, inicia-se o processo de formação do pensamento simbólico, que é a base do processo de leitura e escrita, e das várias literacias como a matemática, a música, as artes e as ciências.
Esses elementos trazidos por Sheridan (2002, 2005, 2009) e Cohn (2012) acerca do desenho se conectam ao que Dehaene (2012) apresenta com relação à escrita, mais especificamente com relação à formação das protoletras.
Essas protoletas são formas elementares reconhecíveis pelos neurônios e que permitem a eles identificarem um objeto, independentemente de sua posição, tamanho, distância, iluminação ou orientação. E elas se assemelham muito com as letras dos diversos alfabetos existentes, indicando que há uma forte relação desse sistema com a invenção da escrita.
De acordo com Dehaene (2012), é possível que partes dessas formas elementares estejam “impressas” em nossos genes, formando um léxico inato de formas. Contudo, a maioria seria formada a partir da interação com o mundo exterior, necessitando de aprendizagem.
Dessa forma, podemos pensar que o desenho teria um papel muito importante na formação dessas protoletras. Além disso, pesquisas mostram que o desenho e a escrita compartilham áreas de ativação cerebral em comum, não só motoras e sensoriais, mas também cognitivas (YUAN e BROWN, 2015), dentre elas as áreas consideradas próprias da escrita, como a área da forma visual da palavra, que é a área do cérebro responsável pelo reconhecimento das letras e palavras (PLANTON at all, 2016).
Esses dados nos apontam uma relação muito importante entre o desenho e a escrita e, se pensarmos que por um lado a escrita é um desenvolvimento recente, por outro lado podemos compreender que estas trilhas neuronais hoje utilizadas por ela tem uma origem evolutiva desde os primeiros hominídeos.
Quando começaram a ter um desenvolvimento do controle motor fino da mão e maior destreza no uso do polegar opositor, as crianças ao rabiscar e desenhar percorrem a mesma trilha neuronal, preparando o seu cérebro para as diversas literacias, dentre elas, a alfabetização.
Ter clareza da função que o desenho exerce no cérebro humano é importante para direcionar as práticas pedagógicas, tanto para a valorização e a estimulação dessa linguagem, como para a conscientização da comunidade escolar, mostrando que ele é um elemento essencial para o desenvolvimento da criança.
Muitas vezes o professor prioriza o código escrito e os exercícios mecânicos, que muito pouco contribuem, principalmente para aquelas crianças que ainda apresentam esquemas gráficos rudimentares, e que acabam se sentindo frustradas e desestimuladas no seu aprendizado, sendo que existe um sistema disponível tão rico de possibilidades, que é o desenho.
REFERÊNCIAS
[1] O autor empresta termos que fazem parte da estrutura da linguagem, por defender que o desenho possui uma estrutura de desenvolvimento semelhante.
COHN, Neil. Explaining ‘I Can’t Draw’: Parallels between the structure and development of language and drawing. Neil Cohn. Research Gate, 2012. Disponível em: https://bit.ly/3vGYpmm
Acesso em: janeiro/2021.
DEHAENE, Stanislas. Os neurônios da leitura: como a ciência explica a nossa capacidade de ler/ Stanislas Dehaene; tradução: Leonor Scliar Cabral.Porto Alegre: Penso, 2012.
PLANTON, Samuel; LONGCAMP, Marieke; PÉRAN, Patrice; DÉMONET, Jean-Francóis; JUCLA, Mélanie. How specialized are writing-specific brain regions? An fMRI study of writing, drawing and oral spelling. Samuel Planton, Marieke Longcamp, Patrice Péran, Jean-Francóis Démonet and Mélanie Jucle. Science Direct, 2016. Disponível em: https://bit.ly/3fLjkiQ
Acesso em: fevereiro/2021.
SHERIDAN, Susan Rich. The Neurological Significance Of Children’s Drawing: The Scribble Hypothesis. Susan Rich Sheridan. Eric: Institute of Education Sciences, 2002. Disponível em: https://bit.ly/3fH5oWX
Acesso em: janeiro/2021.
SHERIDAN, Susan Rich. A theory of marks and mind: the effect of notational systems on hominid brain evolution and child development with an emphasis on exchanges between mothers and children. Susan Rich Sheridan. Eric: Institute of Education Sciences, 2005. Disponível em: https://bit.ly/3fHOs2s
Acesso em: Fevereiro/2021.
SHERIDAN, Susan Rich. Saving Literacy: How Marks Change Minds. A Guide for Professional Caregivers. Susan Rich Sheridan. Eric: Institute of Education Sciences, 2009. Disponível em: https://bit.ly/3uK9B0c
Acesso em : Fevereiro/2021.
YUAN, Ye; BROWN, Steven. Drawing and writing: An Ale meta-analysis of sensorimotor activations. Ye Yuan; Steven Brown. Science Direct, 2015. Disponível em: https://bit.ly/3g25szz
Acesso em: Dezembro/2020.
Wilma Menezes Barbosa é pedagoga, professora de educação infantil e especialista em “Neurociência na Escola”, pelo Instituto Singularidades.