Escrever sobre algo que ainda não aconteceu parece sempre um desafio muito maior do que colocar no papel uma espécie de recuperação de memórias. Temos pensado sobre isso desde que nos foi pedido um texto que contasse um pouco sobre as razões para termos planejado o curso de extensão Gênero e relações étnico-raciais no âmbito da educação para crianças e adolescentes.
É claro que poderíamos começar falando sobre a importância de profissionais da área de educação estarem preparados para lidar com as diferenças entre as (os) alunas (os) em sala de aula. Isso, no entanto, não seria suficiente. O problema em torno dessas questões é um pouco mais complexo que isso.
Quando Mayana e eu montamos esse curso, o que tínhamos em mente era a lacuna ainda aberta no que diz respeito a pensar com afinco as implicações de gênero e das questões étnico-raciais no âmbito escolar. Ambas, enquanto mulheres e profissionais negras, temos refletido fortemente sobre essas questões, tanto no ambiente acadêmico, o que está relacionado às nossas pesquisas, quanto em nossas práticas como educadoras ou como educandas.
Pensar sobre gênero e questões étnico-raciais na escola significa, portanto, abrir espaço para compreender como as diferenças entre todas as corporalidades envolvidas na cena cotidiana da educação fundamentam o modo como as relações se estabelecem nesses espaços. Nesse sentido, é importante frisar o quanto muitas mulheres e pessoas negras – o que também nos inclui – narram os anos escolares como o momento no qual se deram conta, pela primeira vez, de que eram diferentes.
Seja uma diferença relacionada ao “tornar-se mulher”, quando alguns profissionais insistem em dizer o que meninas e meninos podem ou não fazer, limitando-os. Seja uma diferença ligada a não ser uma pessoa branca. Nessas narrativas, qualquer desses reconhecimentos é acompanhado também pela dor de não se reconhecer naquilo que é entendido como positivo ou dentro da norma.
A dor advém, portanto, do fato de que se entender como menina ou menino, bem como se ler como uma pessoa negra, não são atribuições que se encerram apenas no que é visto em nossos corpos. Essas construções de diferenças acontecem como uma espécie de marcação social que classifica e hierarquiza sujeitos a partir daquilo que aparentemente é indicado ou visto diante do outro.
Tais diferenciações ou, em outras palavras, hierarquizações são operadas em algumas situações com clareza de quem está ali envolvido, e, o que é mais sutil e talvez mais preocupante, em outras muitas situações, isso ocorre sem que os profissionais identifiquem os estigmas sociais que de um modo ou de outro estão sendo reproduzidos por eles ou por estudantes.
É crucial, portanto, que ao lidarmos com questões educacionais mudemos o nosso olhar para a diferença. É crucial que entendamos o que é diferente apenas como uma dessemelhança e não como desigualdade, não como algo que é negativo. É por isso que não se trata apenas de “lidar” com as diferenças entre estudantes, mas de respeitá-las e de entendê-las (os) a partir das experiências que as (os) constituem como sujeitos.
Além disso, nesse processo de reconhecimento das diferenças existentes como algo que não é negativo, é crucial que os (as) professores (as) e outros (as) profissionais também se pensem enquanto sujeitos que se constituem por meio de suas próprias experiências.
Pode-se pensar, portanto, que se os alunos constituem enquanto sujeitos no ambiente escolar, sendo um dos primeiros lugares em que essas diferenças são sublinhadas, por ser adulto (a) o (a) educador (a) não tem seu processo de constituição finalizado. O que queremos dizer com isso é que alunos (as) e professores (as) se constituem mutuamente enquanto sujeitos nas relações que estabelecem.
Diante disso, trabalharemos no curso com uma perspectiva interseccional que nos permita conectar diferentes marcas sociais atribuídas aos sujeitos. Uma perspectiva que nos permita conectar brancos e negros, mulheres e homens, jovens e velhos no ambiente escolar, demonstrando o quanto nos constituímos, o tempo todo, um em relação aos outros.
Para tanto, a partir da Antropologia, retomaremos importantes debates e noções produzidos nas últimas década, tais como: gênero, raça, etnia, feminilidades, masculinidades, descolonização do saber e as implicações teóricas e práticas desses debates na educação.
A proposta desse curso surge, portanto, como uma espécie de construção de um projeto social coletivo, no qual entendemos que a resposta para muitos dos conflitos que enfrentamos no cotidiano escolar não está em continuarmos hierarquizando sujeitos nem em tratarmos uns aos outros como iguais, mas de entender que somos todos dessemelhantes.
Um importante exercício, portanto, é buscar que a escola se torne um espaço em que aquilo que difere os corpos ali atuantes seja aceito. Mais do que ser aceito, que seja um elemento a ser pensado e que se investigue como as diversas experiências resultantes da diferenciação dos corpos abre possibilidades de refazimento de uma sociedade que opere modos outros de olhar e de estar no mundo. Como colocado pela teórica Hooks (2017):
[O] aprendizado é um lugar onde o paraíso pode ser criado. A sala de aula, com todas as suas limitações, continua sendo um ambiente de possibilidades. Nesse campo de possibilidades temos a oportunidade de trabalhar pela liberdade, de exigir de nós e dos nossos camaradas uma abertura de mente e do seu coração que nos permita encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente, imaginamos que esquemas para cruzar as fronteiras, para transgredir. Isso é a educação como prática de liberdade (Hooks, 2017, p. 273).
Se o paraíso não puder ser criado ou enquanto ele não se cria, é necessário que imaginemos e criemos um ambiente escolar no qual a educação figure como a abertura de um mundo de possibilidades. É preciso que crianças e jovens, brancos e negros, educandos (as) e educadores (as), não tenham processos de subjetivação que sejam atravessados apenas por dores.
O nosso desejo é que possamos ter cada vez mais ferramentas para que a escola deixe de ser um dos lugares sociais nos quais sujeitos são lidos ou se leem como inferiores e passe a ser um dos primeiros espaços em que estudantes se sintam aceitos (as), respeitados (as) e sonhadores (as).
É nisso que acreditamos, é sobre isso que queremos trocar com vocês nos nove sábados do curso. Vamos juntos (as)?
Mayana Hellen Nunes da Silva é Doutoranda no Programa de Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão (2014). É integrante do Grupo de Estudos em Gênero, Memória e Identidade (UFMA) e assistente técnica da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente.
Fernanda Kalianny Martins é bacharel em Ciências Sociais e mestra em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é Doutoranda na linha de Estudos de Gênero, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisadora associada ao NUMAS/ USP (Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença) e ao Núcleo de Estudos de Gênero PAGU/Unicamp.
Para saber mais: http://institutosingularidades.edu.br/novoportal/produto/genero-e-relacoes-etnico-raciais-no-ambito-da-educacao-para-criancas-e-adolescentes/
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