A imagem do “índio” ainda está vinculada, infelizmente, a como os portugueses viram os habitantes de Abya Yala (“terra viva” como é chamada toda a América Latina na língua Kuna) ou de Pindorama (“terra das palmeiras”, como é chamado o que hoje conhecemos por Brasil em algumas línguas Tupi-Guarani).
De maneira geral, os povos que aqui viviam foram tachados como primitivos, preguiçosos, selvagens, que viviam nas matas, morando em ocas, praticando guerras, poligamia e canibalismo.
Daniel Munduruku, intelectual e escritor, em uma de suas palestras (Estação REDEi, 2017), disse que “índio” é “uma palavra inventada, que não diz quem ele é, mas sim o que as pessoas acham que ele é”.
Segundo ele, essa definição encobre o que ele é de verdade e suas experiências enquanto indivíduo, além de esconder também as diversas sabedorias que os diferentes povos indígenas possuem.
No Brasil vivem mais de 305 nações indígenas, habitando cidades e aldeias nas diferentes regiões e biomas brasileiros, compartilhando diferentes universos e modos de ser e viver, formas de educação, memórias, histórias, lutas, resistências etc. Por isso, falar de “índio” é generalizar e reduzir essas diversidades e diferenças.
Os movimentos indígenas vêm lutando pelo reconhecimento da multiplicidade de pertencimentos étnicos, enquanto povos Guarani, Baniwa, Yanomami, Kayapo, Munduruku, Xipaya, Juruna, Xavante, Borari etc.
Além disso, lutam para garantir seus territórios e espaços sociais, de modo a viabilizar seu bem viver diante de tanto etnocídio e epistemicídio, que vem enfrentando ao longo da história de formação deste país.
O 19 de abril como “Dia do Índio” foi instituído por Getúlio Vargas em 1943, por meio de discursos de que nesse dia fosse lembrada a influência indígena na formação do povo brasileiro. Porém, essa presença está viva e presente. Então, podemos nos perguntar, de que maneira ela é lembrada, enxergada e ouvida?
Por muito tempo, os discursos nacionais giravam em torno de uma visão dos “índios”, como minorias que estavam fadadas ao desaparecimento, já que a vida “civilizada” seria predominante e melhor, sendo, portanto, uma direção inevitável.
No entanto, o atual cenário que vivemos, marcado por crises, fome, doenças, desmatamento, desigualdades, mudanças climáticas, entre muitos outros problemas humanitários nos leva à questão: esse “progressio” (como diria Adoniran Barbosa) é mesmo um bom caminho?
Hoje a população indígena ocupa cada vez mais espaços nas artes, literaturas, ciências e universidades. Também traz enormes contribuições para os debates ambientais, a partir de novas visões sobre os modos de relação das pessoas com a natureza, gritando para o mundo a necessidade de uma transformação da vida e do modo de interação com o ambiente em que vivemos. Ressalto: é hora de escutar e nos abrir para essas vozes.
Uma valorização que não deve se restringir apenas ao mês de abril
Há mais de 15 anos, indígenas de todo o país se mobilizam no Acampamento Terra Livre (ATL) durante o mês de abril. (acompanhe a programação). Os participantes aproveitam as atenções voltadas para o dia (mês) do “índio” para se manifestarem em frente ao Palácio do Planalto em Brasília, onde fazem cantos, rezas, protestos, expõem as suas reivindicações, lutam contra a invisibilidade e a falta de políticas que atendam às suas reais necessidades de vida, denunciando práticas de genocídio, a invasão do agronegócio, madeireiras e mineração em seus territórios, entre outros.
Em abril, muitos indígenas estão mobilizados para fazerem atividades, oficinas e palestras, sendo muito importante essa presença nos espaços educativos, de modo a valorizar esses trabalhos.
Este tema não deve ficar apenas neste mês, mas sim ter continuidade, fazendo valer a lei 11.645/2008, mobilizando esses aprendizados nas diversas disciplinas, ao longo do ano, contando a história que começou milênios antes da chegada e invasão europeia nessas terras.
Os materiais e subsídios para isso estão circulando nas redes sociais, nos livros, nas exposições artísticas e nas músicas, o que nos dá instrumentos para trazer as narrativas dos próprios indígenas para as práticas educativas.
O olhar para a diversidade de vidas e povos, bem como para suas ações e produções atualmente, pode ultrapassar a visão congelada de que os “índios” estão no passado, que suas influências na cultura e nos hábitos brasileiros estejam paradas no tempo, ou mesmo as comuns representações folclorizadas e generalizantes.
Julie Dorrico, escritora e intelectual makuxi, destaca a importância de contar as histórias dos diversos povos, exemplificando com o caso das ocas (como chamavam as casas em algumas línguas Tupi-Guarani).
Ela diz que, ao invés de ensinar que “índios” viviam em ocas, podemos conhecer os diferentes modelos de casas indígenas, antigas e atuais, bem como seus diversos nomes.
Trago como exemplo os Yanomami, que vivem em moradias coletivas dispostas circularmente; na região multiétnica do alto Rio Negro (AM) as pessoas viviam em malocas coletivas, que hoje são mais usadas como espaços educativos, vinculados à educação escolar indígena.
Já os Kaigang faziam casas subterrâneas; os Guarani têm a “casa de reza” (Opy) como um importante espaço da vida comunitária e espiritual etc. Apenas nesse aspecto, já existem muitas ferramentas para as atividades didático-pedagógicas.
Podemos olhar para o bairro em que vivemos e a presença dos nomes indígenas nele, buscando nas narrativas orais outras memórias dessas histórias. Podemos nos atentar aos nomes homenageados nas ruas e praças, buscando saber quem foram essas pessoas.
Por exemplo, onde eu vivo há diversas ruas com nomes de bandeirantes (Afonso Sardinha, Clemente Álvares), que matavam e escravizavam os indígenas. Eles merecem mesmo esta homenagem? Desta maneira, podemos ter uma visão mais crítica da história, enxergando as suas múltiplas versões.
Edson Kayapó, professor e intelectual, nos chama para preencher de vida as escolas, dissolvendo seus muros e o conhecimento pronto, ressaltando que os conhecimentos ancestrais indígenas dispõem de potencial para essa transformação escolar.
Assim, podemos fazer uma roda ao pé de uma árvore, incentivar a escuta pela oralidade, mobilizar as memórias que fortalecem as raízes, aprender pelas experiências, fazer brincadeiras, propor dinâmicas coletivas, entre muitas outras possibilidades de diversificação dos métodos pedagógicos.
Desta forma, podemos positivar e aproximar das pessoas as sabedorias dos povos indígenas, como uma presença viva em nós e nesse território que habitamos, terra cheia de vidas, histórias e lutas.
Referências usadas no texto:
Julie Dorrico, sobre frases que não se deve usar para se referir aos indígenas e sua história
Daniel Munduruku, sobre a imprecisão da palavra “índio”, e a respeito do especial Falas da Terra, que foi exibido na última segunda-feira.
Edson Kayapó, sobre educação escolar indígena e educação intercultural.
Patrícia Vannetti Veiga é graduada em Pedagogia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Ciências Sociais/ Antropologia pela Universidade de Campinas (Unicamp). É mestre em Linguística pela Unicamp e doutoranda em Antropologia Social, Etnologia Indígena pela mesma universidade. É professora da graduação em Letras do Instituto Singularidades.
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